Abdome agudo em Pediatria: tudo que você precisa saber

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Imagina só: você está de plantão no pronto-socorro pediátrico e atende uma criança com dor abdominal, que não consegue te dizer direito onde está a dor, tendo certa relutância para te deixar examinar. A história pregressa, de quebra, ainda não te ajuda a encontrar o diagnóstico certeiro… Essa situação te angustia? Vamos tentar organizar e sistematizar o raciocínio clínico de abdome agudo em Pediatria com alguns key-points para uma consulta muito bem feita.

Primeiro passo: separando o joio do trigo

Sendo uma queixa relativamente dentre as mais comuns dentro da emergência pediátrica, já dá para imaginar que, ao atender um paciente com dor abdominal, teremos que nos atentar para a diferenciação entre causas benignas e autolimitadas dessa condição, que correspondem ao grande contingente das causas mais graves, cirúrgicas ou não cirúrgicas, cujo reconhecimento precoce e imediato pode salvar seu paciente. 

Para isso, suas armas serão: a boa e velha anamnese e um exame físico muito caprichoso, que tanto terão a capacidade de diagnosticar clinicamente a maior parte das condições quanto direcionar melhor a realização de exames complementares.

A amnese no abdome agudo em Pediatria 

Falando um pouco da anamnese, tenha em mente que será um paciente que, muitas vezes, não conseguirá fornecer com exatidão o famoso decálogo da dor por meio de:

  • referir com prontidão o local de dor;
  • graduar a intensidade em escalas objetivas;
  • referir fatores de melhora ou piora. 

Mas sem ansiedade: é necessário calma e paciência, confiança nas informações dos pais e/ou responsáveis e estabelecer uma conexão de confiança com aquele paciente, algo que vai facilitar muito o seu exame físico. Aquela pode ser uma situação muito estressante para a criança e para o responsável!

Algumas características da anamnese que devem levantar suspeita de condição mais grave subjacente são: 

  • dor súbita, com despertar noturno;
  • dor que interrompe a criança enquanto ela brinca;
  • associação com vômitos persistentes, especialmente biliosos ou fecaloides;
  • alterações nas evacuações, especialmente sangramento (melena e/ou enterorragia);
  • distensão abdominal;
  • ausência de eliminação de flatos e/ou fezes.

Além disso, o raciocínio diagnóstico deve começar já na identificação, com uma informação muito simples: a faixa etária! É uma informação muito importante, que ajuda a guiar o raciocínio etiológico, mas não deve ser levada de forma completamente “quadrada”, já que podemos ter apresentações atípicas de doenças fora da faixa etária.

CAUSAS DE DOR ABDOMINAL CONFORME FAIXA ETÁRIA
Causas não-cirúrgicas
< 2 anos2 a 5 anos5 a 12 anos> 12 anos
GastroenteritesGastroenteritesGastroenteritesGastroenterites
ITUITUITUNefrolitíase
PneumoniaPneumoniaFaringite agudaCausas ginecológicas (dismenorreia, dor da ovulação, anexite)
Sepse/bacteremiaCetoacidose diabéticaCetoacidose diabéticaPancreatite aguda
ConstipaçãoPancreatite agudaPancreatite agudaConstipação
TonsiliteConstipaçãoConstipação
Adenite mesentéricaAdenite mesentérica
CAUSAS CIRÚRGICAS
< 2 anos2 a 5 anos5 a 12 anos> 12 anos
Má-rotação intestinal, volvoApendicite agudaApendicite agudaApendicite aguda
IntussuscepçãoMá-rotação intestinal, volvoTraumaTrauma
Estenose hipertrófica de piloroIntussuscepçãoTorção testicular ou torção ovarianaTorção testicular ou torção ovariana
Doença de HirschsprungTraumaHérnia inguinalHérnia inguinal
Hérnia encarceradaHérnia inguinalGestação (incluindo ectópica)

Adaptado de: Baracat, E. Reis, M. Abdome agudo. Tratado de Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria. 5ª edição. 2021.

Nos pacientes com antecedentes cirúrgicos, não se deve esquecer também de bridas/adesões como causas de abdome agudo obstrutivo!

O exame físico no abdome agudo em Pediatria

Sim, eu entendo que uma porta de PS lotada pode ser um fator de dificuldade para examinar um exame físico completo. Mas, não tem espaço pra um exame físico sucinto na dor abdominal em Pediatria. Algumas condições não abdominais podem se manifestar, como dor abdominal – que tal uma cetoacidose diabética com dor abdominal e vômitos? Ou então uma adolescente em idade fértil, com atraso menstrual, com uma gestação ectópica?

Além disso, é imprescindível prestar muita atenção nos outros sistemas. Uma pneumonia localizada em base pulmonar pode levar a dor referida no abdome. Além disso, uma adenite mesentérica pode ser secundária a uma faringite aguda, levando a dor abdominal, por exemplo. 

Portanto, é indispensável examinar toda a criança, e isso inclui também o exame da região inguinal – encarceramento de hérnia inguinal pode levar a um quadro de abdome agudo, frequentemente um diagnóstico que passa batido.

Outro ponto importante é a avaliação do estado geral, um ponto de partida essencial para a tomada de decisões. Toxemia, sinais de desidratação, queda de estado geral… sem dúvidas, essas características preocupam e devem ser levadas em conta para desvendar o diagnóstico etiológico.

A importância da interconsulta cirúrgica

Alguns sinais clínicos que podem servir de alerta para possíveis doenças cirúrgicas:

  • Vômitos repetidos, especialmente biliosos ou fecaloides;
  • Parada de eliminação de flatos ou fezes;
  • Distensão abdominal;
  • Massas abdominais palpáveis;
  • Sangramento intestinal, como melena e/ou enterorragia;
  • Peristalse visível, mais comum em recém-nascidos ou crianças desnutridas.

Quais exames complementares devem ser solicitados?

Cuidado com a tentação de sair pedindo exames complementares de forma indiscriminada. É o famoso: se pediu, tem que saber o que fazer com o resultado! Isso porque pedir a bateria de exames que podem sugerir uma etiologia abdominal, o famoso “barrigograma”, pode gerar uma coleta (e, portanto, um stress) desnecessário para a criança e onerar o sistema de saúde. 

De forma geral, um bom exame complementar a começar é a famosa glicemia capilar, um exame fácil e acessível. Como vimos acima, cetoacidose diabética é uma das causas não cirúrgicas de dor abdominal. Além disso, um paciente com dor abdominal e vômitos, por exemplo, pode estar com hipoglicemia.

Com relação aos exames laboratoriais pertinentes, não tem jeito – devem ser direcionados para a causa. 

  • Urina 1 – importante especialmente em lactentes – dor abdominal pode ser uma infecção de trato urinário;
  • Hemograma – não é um dos melhores exames, mas pode fornecer algumas informações importantes, como leucocitose (no caso de uma suspeita de apendicite) ou anemia aguda em casos de diarreia sanguinolenta ou suspeita de hemorragias gastrointestinais;
  • Provas inflamatórias na suspeita de infecções graves (obs: não são específicos!);
  • Gasometria – outro exame importante, especialmente quando há associação com vômitos, o que facilita o desenvolvimento de distúrbios ácido-base e hidroeletrolíticos;
  • Marcadores de lesão hepática;
  • Amilase e lipase – na suspeita de pancreatite aguda;

Para os exames de imagem, vale o mesmo raciocínio. RX de abdome geralmente é o mais acessível na maioria dos serviços, porém não é o exame que mais fornece informações. É um exame muito bom na suspeita de abdome agudo obstrutivo e/ou perfurativo, por exemplo, mas na suspeita de abdome agudo inflamatório, nem sempre encontraremos alterações. 

No geral, a ultrassonografia é o exame preferido para a triagem inicial, pela maior acessibilidade, menor custo, e, principalmente, não exposição à radiação, como acontece com tomografia computadorizada.

Os diagnósticos diferenciais do abdome agudo em Pediatria

Dito isso, preparamos uma série de flashcards dos principais diagnósticos de abdome agudo dentro da Pediatria. Observe:

APENDICITE AGUDA
Faixa etáriaA partir de 2 anos de idade
Quadro clínicoDor de início periumbilical, migrando para quadrante inferior direito
Pode estar associada a náuseas, vômitos e febre
Em crianças menores, o quadro pode ser mais inespecífico
EXAME FÍSICO
– postura álgica
– sinal de Blumberg: dor após compressão da fossa ilíaca direita (FID) e retirada brusca da mão
– sinal de Rovsing: dor referida na FID quando comprime-se a FIE
Exames complementaresHemograma com leucocitose e neutrofilia
RX de abdome – raramente, pode mostrar fecalito em quadrante inferior direito e apagamento do músculo psoas a direita
USG de abdome – pode ser o primeiro exame a ser realizado, mas nem sempre fecha o diagnóstico
TC de abdome – complementar a suspeita diagnóstica, não deve ser a primeira opção sem antes considerar USG
Abdome agudo em Pediatria - saiba mais
Fecalito em apêndice no USG. Fonte: Evaluation of abdominal pain in children. BMJ Best Practice
ManejoOpções:
– Controle álgico
– Manutenção de hidratação endovenosa
– Antibioticoterapia: ex, ceftriaxone + metronidazol
– Tratamento cirúrgico
PAS (Pediatric appendicitis score)
< 4: negativo4 a 7: necessária investigação> 7: sugestivo de apendicite aguda
Náuseas/vômitos: 1 ponto
Anorexia: 1 ponto
Febre: 1 ponto
Migração da dor para FID: 1 ponto
Sensibilidade em FID: 2 pontos
Dor em FID após tossir ou pular e/ou à percussão: 2 pontos
Leucocitose > 10.000: 1 pontoNeutrofilia > 7500: 1 ponto
INTUSSUSCEPÇÃO OU INVAGINAÇÃO INTESTINAL
Faixa etáriaLactentes, especialmente entre 6 e 12 meses de idade
Quadro clínicoDor abdominal INTERMITENTE em cólica, com vômitos biliosos e eliminação de sangue com muco “em geleia de morango”
EXAME FÍSICO
– fezes em “geleia de morango”
– massa palpável em forma de “salsicha” no quadrante superior direito
Exames complementaresULTRASSONOGRAFIA DE ABDOME – Sinal típico: Sinal “em alvo”Abdome agudo em Pediatria - saiba mais
RX de abdome – pode ser útil para diagnosticar perfuraçãoTC de abdome – pode ser útil para identificar causas anatômicas como “cabeça de invaginação”
ManejoInicial: redução por enema – hidrostático (solução salina ou contraste) ou pneumático (ar)
Cirúrgico – indicações
– comprometimento do estado geral ou instabilidade
– peritonite ou sinais de perfuração intestinal
– falha completa na tentativa de redução por enema
– algumas referências orientam considerar em crianças acima de 2 anos ou na presença de um fator anatômico pontual, como pólipos ou divertículo de Meckel.
ESTENOSE HIPERTRÓFICA DE PILORO
Faixa etáriaLactentes jovens – geralmente de 2 a 6 semanas de vida
Quadro clínicoVômitos com leite não digerido, com manutenção do apetite
EXAME FÍSICO
– peristalse visível pode estar presente
– palpação de massa abdominal em “oliva” no quadrante superior direito em 50-90%
Exames complementaresGasometria arterial – ALCALOSE METABÓLICA HIPERCLORÊMICA secundária aos vômitos
ULTRASSONOGRAFIA DE ABDOME – espessamento pilóricoAbdome agudo em Pediatria - saiba mais
ManejoCorreção de distúrbios hidroeletrolíticos e hidratação
Piloromiotomia Dilatação endoscópica – menos utilizada

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DanielZaidan dos Santos

Daniel Zaidan dos Santos

Nascido em 1996 em São Paulo, médico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) formado em 2019. Residência em Pediatria da USP-SP. Apaixonado por duas coisas que são base para um futuro melhor: educação e Pediatria. Transmitir conhecimento para alguém é o legado mais valioso que podemos deixar, e buscar fazer isso de forma prazerosa para o outro é ainda mais recompensador. Siga no Instagram: @danzaidan