Ataxia: você conhece todas?

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E aí, galera, tudo bem? Eu sei, eu sei, todo mundo fica ansioso quando vê um tema de neurologia, principalmente algo mais incomum, como ataxia. Mas, justamente por isso, vamos hoje facilitar esse tema que desequilibra tanta gente! 

Vamos dividir em causas mais agudas, subagudas e crônicas, focando nas mais comuns e naquilo que o não especialista vai ver mais comumente. Se você curte também aquelas doenças mais raras com epônimos difíceis de escrever, não pare de ler ainda! Vamos falar (brevemente) sobre elas também.

Então, segue aí o texto e vamos juntos entender mais sobre a ataxia!

Definição

Ataxia é uma palavra que vem do grego “a-” (prefixo de negação) + “τάξις” (ordem) e se refere, em sentido mais amplo, justamente a essa incoordenação de movimento.  Nesse contexto, é possível falar em ataxias sensitivas, ataxias vestibulares e ataxias cerebelares. Hoje, vamos focar sobretudo nas ataxias cerebelares

Existem diversas formas de dividir ataxias cerebelares: reversíveis x irreversíveis; genéticas x adquiridas; agudas x subagudas x crônicas. Para tornar mais didático, vamos usar essa última divisão, por tempo de apresentação. 

Nesse sentido, chamaremos de aguda uma ataxia que ocorra em minutos a horas; subaguda de dias a semanas; e crônicas as que progredirem ao longo de dias, meses, podendo chegar até a anos de evolução. 

Topografia

Antes de partirmos às causas, vamos à topografia. As ataxias cerebelares, se localizam no cerebelo, podendo ser nos hemisférios ou no vermis (centro) cerebelar. Ataxias localizadas no vermis tendem a ter um comprometimento maior de tronco e marcha, podendo ainda cursar com vertigem e dismetria sobretudo de membros inferiores.

As ataxias de hemisférios cerebelares, por sua vez, atingem principalmente os membros ipsilaterais (lembra que o cerebelo tem dupla decussação? Por isso vai ser acometido o lado ipsilateral e não o contralateral como acontece no córtex cerebral). Dessa forma, ocorre disdiadococinesia (dificuldade de realizar rapidamente movimentos repetidos), dismetria (incluindo dismetria na manobra índex-nariz) e tremor de intenção (piorando quando a mão se aproxima do alvo).

Ataxia aguda

As ataxias agudas são aquelas que se desenvolvem ao longo de minutos a horas, podendo mesmo ter início súbito.

Quando falamos de início súbito na Neurologia, incluindo ataxia, devemos lembrar de duas etiologias: vascular e toxinas.

Ataxia vascular

A ataxia vascular pode ser causada por isquemia ou hemorragia cerebelar.

A isquemia ocorre por comprometimento do sistema arterial vertebrobasilar, seja de etiologia embólica, trombótica ou até mesmo por dissecção arterial. As células cerebelares são muito sensíveis à hipóxia, então o tratamento do AVC deve ser rápido com uso de trombolíticos (uma vez que sejam descartados sangramentos ou outras contraindicações, claro).

No caso dos sangramentos, usualmente ocorrem no vermis cerebelar e podem, assim como no caso de isquemias mais extensas, fazer efeito de massa e causar hidrocefalias e herniação, culminando em óbito do paciente.

Dessa forma, lesões vasculares no cerebelo são verdadeiras emergências neurológicas, devendo ser realizada rapidamente Tomografia Computadorizada (TC) de crânio, preferencialmente com angioTC, para avaliação etiológica (a angioTC permite avaliar presença de dissecção) e avaliação de gravidade e herniação. Assim, craniectomias descompressivas muitas vezes são necessárias em pacientes com grandes lesões em fossa posterior.

Ataxia tóxica

Dentre as causas mais comuns de ataxia estão drogas de uso muito comum na neurologia: antiepilépticos. Grande parte dessas drogas age sobre canais de sódio e podem causar ataxia.

Um exemplo muito comum é a fenitoína, na qual a ataxia é dose dependente, mas pode ocorrer em menor intensidade (usualmente nistagmo) até mesmo na faixa terapêutica. 

Carbamazepina e lamotrigina são outros antiepilépticos que agem sobre o canal de sódio e podem causar ataxia. Mais raramente, até mesmo fenobarbital e benzodiazepínicos podem causar ataxia.

Uma causa medicamentosa de ataxia menos usual na prática médica diária é o uso dos quimioterápicos citarabina e fluorouracil. Vale a pena ficar atento a sintomas cerebelares em pacientes no uso dessas drogas, já que os sintomas são potencialmente graves podendo ser até mesmo irreversíveis.

Ainda nas toxinas entra a mais comum causa de ataxia: álcool. Aposto que muitos dos leitores já apresentaram uma ataxia aguda com marcha ebriosa decorrente dessa intoxicação! Além do álcool, outra causa tóxica de ataxia digna de nota é intoxicação com metais pesados.

Infecções

Apesar de os dois grupos acima serem mais comuns, meningoencefalites e cerebelite pós infecciosa (usualmente após infecções virais, como catapora) podem cursar de forma aguda.

Portanto, vimos que em um paciente com ataxia aguda, inicialmente devemos tratar como AVC e realizar uma neuroimagem, se possível incluindo angioTC. Coletar uma história detalhada incluindo dados sobre infecções recentes e uso de medicações pode ainda ajudar na elucidação diagnóstica. Na falta de definição causal, uma Ressonância Magnética (RM) pode ajudar na avaliação da fossa posterior e punção lombar ajuda na exclusão de meningoencefalites. 

Ataxia subaguda

A ataxia subaguda se inicia de dias a semanas e muitas etiologias podem causar essa apresentação, mas algumas são sobretudo dignas de lembrança: infecções, etilismo crônico/hipovitaminoses, doenças autoimunes e doenças sistêmicas.

Infecções

As infecções que causam ataxia subaguda são mais raras, a exemplo da Leucoencefalopatia Multifocal Progressiva (LEMP) – causada pelo JC vírus -, doenças priônicas e doença de Whipple (causada pela Tropheryma whipplei). 

LEMP é uma doença que cursa com alteração do estado mental e ataxia, sobretudo em pacientes com HIV com contagem de CD4 + < 200. Raramente ocorre em pacientes imunocompetentes. O diagnóstico é feito pela imagem típica e PCR positivo para vírus JC no líquor (exame nem sempre disponível, por sinal). 

Doenças priônicas, a exemplo de Creutzfeldt-Jakob, devem ser suspeitadas em jovens que cursam com alterações neuropsiquiátricas rapidamente progressivas, mioclonias e ataxia. 

Já a doença de Whipple é primariamente uma rara infecção intestinal que cursa com diarreia crônica e, em alguns casos, cursa com alterações neurológicas, tipicamente uma miorritmia oculomasticatória.

Etilismo e hipovitaminoses

O consumo agudo do álcool pode causar uma ataxia transitória (como foi dito acima), mas o uso crônico pode causar degeneração cerebelar e ataxia persistente. Além disso, se associa a deficiência de tiamina (causando a encefalopatia de Wernicke), de vitamina B12 (que se associa ainda a uma ataxia sensitiva) e deficiência de vitamina E (causando uma síndrome caracterizada por ataxia cerebelar e polineuropatia).

Autoimunes

Dentre as causas autoimunes, vale a pena lembrar de esclerose múltipla, síndrome de Miller Fisher, encefalomielite disseminada aguda (ADEM, na sigla em inglês) e ataxia associada a anticorpo anti-GAD

Esclerose múltipla é um tema bastante extenso e essa doença se manifesta com múltiplas alterações neurológicas ao longo do tempo, sendo uma delas a ataxia.

Já a síndrome de Miller Fisher é uma variante da síndrome de Guillain Barré (SGB) caracterizada pela tríade de ataxia, oftalmoplegia e arreflexia, com maior risco de comprometimento respiratório que a SGB típica. É digno de nota que esses pacientes têm como marcador o anticorpo anti-GQ1b presente.

A ADEM é uma doença neurológica monofásica (ao contrário da esclerose múltipla) com envolvimento de substância branca, usualmente após doença viral. 

Já a ataxia anti-GAD é uma ataxia rara que se associa a outras doenças autoimunes e há presença do anticorpo anti-GAD no líquor. Há outras causas de ataxia autoimune, mas que fogem ao escopo desse blog.

Doenças sistêmicas

Quanto a doenças sistêmicas, neoplasias, doença celíaca, sarcoidose e hipotireoidismo são causas importantes de ataxia.

As neoplasias podem causar ataxia tanto por metástase cerebelar quanto por síndromes paraneoplásicas (degeneração cerebelar paraneoplásica, mais associada com câncer de pulmão pequenas células, câncer de mama e linfoma).

O glúten, seja pela doença celíaca ou pela ataxia do gluten (ataxia associada a antigliadina positiva com ou sem enteropatia), se associa à ataxia em indivíduos predispostos.

Sarcoidose é uma doença primariamente pulmonar, mas que pode causar uma miríade de sintomas neurológicos, entre eles ataxia, além de meningite asséptica e neuropatias periféricas.

O hipotireoidismo grave não tratado pode cursar primariamente com ataxia, mas cuidado para não deixar passar o diagnóstico de alguma causa autoimune associada. Lembre sempre que ter uma doença autoimune é fator de risco para outra doença autoimune!

Resumindo tudo: neuroimagem (sobretudo RM) e líquor são de grande importância na avaliação dessas ataxias subagudas! Além disso, não deixe passar a possibilidade de hipovitaminoses (solicite B1 e B12, principalmente). Vale ainda investigar a possibilidade de causas sistêmicas, fique atento para diarreia ou dados da história que sugiram neoplasia (ex. Perda de peso, tabagismo…).

Ataxia crônica 

Aqui se encaixam a maioria das causas de ataxia cerebelar, grande parte delas de etiologia genética. Em crianças e pacientes mais jovens, vale a pena lembrar também de causas estruturais, como malformação de Chiari, síndrome de Joubert (hipoplasia do vermis do cerebelo) e Dandy-Walker (quando há ausência pelo menos em parte do vermis do cerebelo).

As ataxias genéticas entram em grande parte na visão do especialista. Vale a pena ter uma noção das principais, que são categorizadas de acordo com o modo de herança em autossômicas dominantes, recessivas ou mitocondriais.

Ataxias autossômicas dominantes

As principais são as ataxias espinocerebelares (conhecidas como SCAs devido à sigla em inglês). Existem muitas SCAs, cada uma com clínica e mutações próprias.

Ataxias autossômicas recessivas

A mais comum é a Ataxia de Friedreich (que é também a ataxia hereditária mais comum entre todas) e ocorre, na maioria dos casos, por expansão da sequência trinucleotídeo GAA. 

Outras ataxias autossômicas recessivas são ataxia-telangiectasia (ocorre principalmente em crianças e têm associação com desenvolvimento de neoplasias), ataxia com apraxia oculomotora e ataxia hereditária associada a deficiência de vitamina E.

De conduta nesses casos, o especialista realizará uma propedêutica mais detalhada e avaliação genética para elucidação da etiologia. No caso de ataxias hereditárias, aconselhamento genético é sempre uma boa opção.

Pra fechar o assunto

Ufa! E aí, já estão com marcha ebriosa de tanta informação? Lembrem-se sempre que o mais importante é pensar primeiro nas causas mais graves e agudamente tratáveis (lembrem-se de pensar na ataxia aguda súbita como sendo AVC até que se prove o contrário, combinado?). Ressonância vai ser uma excelente aliada e a líquor traz informações valiosas, principalmente sobre infecções e doenças autoimunes. Vale a pena sempre ter uma avaliação do neurologista nesses casos de ataxia!

Fonte: Netter, Atlas de Anatomia Humana, 7a edição.
Resumo de algumas causas relevantes de ataxia.
Resumo de algumas causas relevantes de ataxia.

É isso!

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AnuarSaleh

Anuar Saleh

Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.