Há quem diga que o sonho de todo estudante de medicina (principalmente daqueles que assistem Grey’s Anatomy) é chegar no dia de dizer: “bisturi, por favor!”, e fazer aquela incisão precisa e contínua ao longo do tórax ou do abdome do paciente. Bem, ao final desse artigo veremos que nem sempre é tão simples assim… os tempos mudam, a tecnologia também. Na cirurgia de colecistite aguda, por exemplo, é mais comum dizer: “bisturi, trocartes e videolaparoscópio, por favor!”. O motivo? Vem com a gente pra entender!
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Imagina só: você está no PS e se depara com uma paciente do sexo feminino, de 40 anos, multípara, obesa, com dor intensa e contínua no quadrante superior direito do abdome, associada a náuseas, vômitos e febre. Ao exame físico, você nota uma parada da inspiração ao comprimir o ponto cístico da paciente (sinal de Murphy positivo), e o exame de sangue acusa uma leucocitose. Você então opta por fazer uma USG abdominal.
Não tem outra, né? Colecistite aguda.
E agora, qual é sua opção terapêutica para essa paciente? Trata-se de uma emergência? Paciente com baixo ou alto risco cirúrgico? Videolaparoscopia ou cirurgia aberta?
Calma! Sabendo que o pilar do tratamento, nesse caso, é a cirurgia de colecistite aguda, vamos estratificar o atendimento para facilitar seu raciocínio, e dar uma lembrada nos métodos cirúrgicos e suas características.
Depois de abordar a paciente, estabelecer o diagnóstico e proporcionar um atendimento de suporte inicial (controle da dor, hidratação, antibioticoterapia…), o próximo passo é saber se você está diante de uma emergência cirúrgica ou não. Para isso, devemos responder a 3 perguntas chaves:
1) Há gangrena / necrose de vesícula biliar? (Seja pelo diagnóstico tomográfico ou pela suspeita baseada na piora clínica do paciente mesmo após suporte terapêutico inicial);
2) Há perfuração de vesícula biliar?
3) É uma colecistite enfisematosa?
Se a resposta para qualquer uma dessas perguntas for “sim”, temos um quadro emergencial e, independentemente da classificação de risco da paciente, há indicação de cirurgia de colecistite aguda de emergência no momento do diagnóstico.
Ok, mas nossa paciente não apresenta nenhum dos critérios acima. Então qual é o próximo passo?
Quando o paciente não preenche os pré-requisitos para uma cirurgia de emergência, devemos estratificá-lo quanto ao risco cirúrgico para determinar se ele deve ser submetido precoce ou tardiamente à colecistectomia — padrão-ouro no que diz respeito ao tratamento de colecistite calculosa aguda.
Diversos sistemas de estratificação de risco foram elaborados para determinar a necessidade e a candidatura dos pacientes ao procedimento cirúrgico precoce. Pela abordagem mais simplificada, adotaremos a American Society of Anesthesiologys (ASA) como base para a classificação do risco cirúrgico de pacientes com colecistite aguda. Entretanto, ao final desse artigo abriremos um parênteses para abordar os critérios de Tokyo (Tokyo Guidelines 2018), globalmente disseminados como importantes tanto na confirmação diagnóstica quanto na graduação da severidade da colecistite aguda.
Pois bem, antes de propriamente estabelecermos as indicações cirúrgicas, que tal refrescar a memória sobre o ASA?
De maneira geral, adotamos que os pacientes considerados de “baixo risco” representam as classificações de ASA I ou II, enquanto os pacientes de “alto risco” correspondem ao ASA III, IV ou V.
Você abordou a paciente, estabeleceu seu diagnóstico de colecistite aguda com base em aspectos clínicos e laboratoriais, introduziu a terapia de suporte inicial e excluiu a possibilidade de um quadro emergencial com necessidade de cirurgia de colecistite aguda imediata. Excelente! Sua função agora é determinar se essa paciente possui baixo ou alto risco cirúrgico, para então analisar o Δt adequado desde o início dos sintomas até a realização da colecistectomia. Bora lá!
Via de regra, para pacientes com colecistite calculosa aguda estratificados como ASA I ou II, isto é, de baixo risco cirúrgico, e que não possuem indicação cirúrgica de emergência, está indicada a colecistectomia videolaparoscópica (foi associada a menor índices de mortalidade, morbidade, infecção de ferida operatória e pneumonia, e tempo de internação hospitalar) num intervalo preferencial de até 3 dias (72h) desde o início dos sintomas (sendo que alguns estudos ressaltam a possibilidade de uma janela estendida de até 7 a 10 dias sem perda de benefícios).
Com relação aos pacientes com colecistite calculosa aguda estratificados como ASA III, IV ou V, isto é, de alto risco cirúrgico, e que não possuem indicação de cirurgia de colecistite aguda, é descrito que o manejo não operatório precoce se sobrepõe à colecistectomia imediata. E o que seria esse manejo precoce? Ele consiste basicamente em:
Aqui vale uma passagem breve pelos tipos possíveis de drenagem e suas principais indicações clínicas:
A colecistostomia percutânea é uma opção para pacientes com colecistite aguda que preenchem a todos os seguintes critérios:
Quanto à janela de tempo, recomenda-se o quanto antes possível (benefícios demonstrados com atuação < 24h), a depender da apresentação clínica do paciente, sendo que a maioria estabiliza após cerca de 3 dias do início do antibiótico.
Pode ser feita em pacientes com colecistite aguda que tenham contraindicação ao procedimento percutâneo ou que não são anatomicamente viáveis (doença hepática avançada — cirrose —, ascite ou coagulopatia).
Esse método de colecistostomia pode ser realizado através de drenagem transpapilar (que utiliza colangiografia retrógrada endoscópica – CPRE) ou da drenagem transmural guiada por ultrassonografia endoscópica.
Dando seguimento, é importante deixar claro que a drenagem é tida como uma “ponte” para a atuação cirúrgica, tendo em vista que sua realização isolada como terapia definitiva não é indicada. Portanto, temos dois possíveis cenários a serem reconhecidos:
1) Não resposta à antibioticoterapia e após um a três dias da drenagem da vesícula biliar — provavelmente estamos diante de uma colecistite gangrenosa, sendo indicada a cirurgia de emergência independente do risco cirúrgico do paciente!
2) Resolução do quadro de colecistite com o tratamento não operatório — reavaliamos o risco cirúrgico do paciente para vermos se existe ou não indicação de colecistectomia precoce a partir daí. Pacientes que permanecem como alto risco cirúrgico mesmo após os procedimentos podem ser encaminhados para a realização de extração percutânea de cálculos biliares com ou sem litotripsia mecânica, ou podem ficar apenas sob observação, sendo submetidos a colecistectomia em caso de quadro recorrente.
É muita informação, eu sei! Por isso que agora vamos compilar tudo que foi dito e resumir toda essa trajetória de forma que você consiga padronizar todo o atendimento e saiba o timing correto de se indicar ou não uma colecistectomia. Se liga:
Ufa! Agora você sabe como indicar a cirurgia de colecistite aguda. Mas… e como funciona na hora do procedimento? Qual a diferença entre a colecistectomia videolaparoscópica e a cirurgia aberta? Vale a discussão!
Antes de detalharmos os procedimentos cirúrgicos em si, cabe destacar que a colecistectomia videolaparoscópica é considerada a abordagem padrão no tratamento definitivo da colecistite calculosa aguda. Entretanto, como você já deve ter ouvido aquele ditado que “na medicina e no amor: nem nunca, nem sempre”, algumas situações contraindicam a cirurgia de colecistite aguda por laparoscopia, por exemplo:
Independentemente da técnica escolhida, existem algumas orientações e alguns procedimentos que compõem o preparo pré-operatório:
Sabemos indicar e contraindicar a cirurgia, sabemos o método padrão-ouro para colecistectomia, e sabemos como realizar o preparo pré-operatório do paciente. Agora vamos entender como funcionam as vias laparoscópica e aberta (laparotomia) para acessarmos a vesícula inflamada.
Passo 1 – Saber identificar a disposição anatômica para colocação dos aparelhos cirúrgicos videolaparoscópicos.
Passo 2 – Entender as possíveis formas de acesso à cavidade peritoneal e à criação do pneumoperitônio: técnica aberta ou técnica fechada. A primeira consiste na realização de uma pequena incisão na cicatriz umbilical, amputando-a internamente em direção à fáscia da parede abdominal, com incisão direta do peritônio e colocação de um trocarte rombo, ou cânula de Hasson. A segunda, por sua vez, inicia-se com a inserção de uma agulha na cavidade abdominal, através de uma incisão, previamente ao posicionamento de qualquer trocarte, a fim de se insuflar o abdome com CO2.
Passo 3 – Conhecer os passos técnicos que se seguem independente da via de acesso escolhida:
OBS.: Dá-se o nome de “visão crítica de segurança” a visualização do leito hepático através do espaço entre o ducto cístico e a artéria cística e acima desta, sendo importante por minimizar o risco de lesão iatrogênica do ducto biliar.
Com o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas menos invasivas, a exemplo da videolaparoscopia (padrão-ouro no contexto de colecistite aguda), a colecistectomia convencional passou a ser uma opção não muito disseminada, sendo geralmente realizada seguindo a conversão de uma abordagem laparoscópica.
Por exemplo, ao se deparar com uma inflamação severa, adesão ou sangramento no triângulo de Calot, até mesmo uma suspeita de lesão do ducto biliar, o cirurgião deve estar preparado para uma possível conversão para cirurgia aberta, garantindo a segurança da dissecção.
A cirurgia de colecistite aguda convencional pode ser realizada através de uma incisão mediana, paramediana supraumbilical ou, preferencialmente, subcostal direita na extensão de 8 a 12 cm. A exposição tanto do campo operatório quanto do colo da vesícula e da via biliar principal é obtida com o emprego de afastadores de Doyen inseridos no ângulo hepático do cólon e no lobo direito do fígado, sendo protegidos com compressa, mais a retração manual da primeira porção do duodeno e do antro gástrico.
Pontos relevantes a serem abordados:
Meu pai do céu! Não é que a gente conseguiu? Não se preocupe, não é só você que tem dificuldade com cirurgia de colecistite aguda, cada detalhe é fundamental, mas a gente tenta facilitar para você!
Já estamos chegando ao fim, e para fechar com chave de ouro, lembra que prometemos dar uma pincelada nos critérios de Tokyo? Então vamos com o gás final!
Basicamente, temos que os critérios de Tokyo (derivados das Diretrizes de Tokyo para critérios de diagnóstico e classificação da gravidade da colecistite aguda e da colangite aguda) constituem diretrizes produzidas com base no consenso alcançado durante as discussões por especialistas globais na Reunião de consenso de Tóquio realizada em 2007, tendo sido a primeira versão publicada como Diretrizes de Tóquio 2007 (TG07).
Com base em estudos que encontraram a vida útil das diretrizes em cerca de 5 anos, o Comitê de Revisão das Diretrizes de Tóquio revisou as diretrizes TG07 em 2013. Por fim, a última revisão foi realizada no ano de 2018, constituindo a TG18, que basicamente seguiu os mesmos protocolos abordados na última análise. Então vamos direto ao ponto, uma vez que essas diretrizes são importantes não só para estudos científicos, mas também para o manejo clínico de pacientes:
A) SINAIS LOCAIS DE INFLAMAÇÃO ETC.
1. Sinal de Murphy positivo;
2. Massa / dor / sensibilidade no quadrante superior direito (QSD) do abdome.
B) SINAIS SISTÊMICOS DE INFLAMAÇÃO ETC.
1. Febre;
2. Elevação da PCR;
3. Elevação das células brancas (leucocitose).
C) ACHADOS DE IMAGEM
Achados de imagem característicos da colecistite aguda
SUSPEITA DIAGNÓSTICA: um item do A + um item do B
DIAGNÓSTICO DEFINITIVO: um item do A + um item do B + C
Para fechar, temos ainda a classificação de gravidade derivada das diretrizes de Tokyo, que constitui uma importante ferramenta de estratificação de risco do paciente com colecistectomia aguda, de modo que, concomitante a outras classificações, como a de ASA, auxilia na abordagem pré-operatória de indicação ou não da cirurgia precoce.
Está associada com disfunção de qualquer um dos seguintes órgãos/sistemas:
1. Disfunção cardiovascular: hipotensão que requer tratamento com dopamina ≥5 μg/kg por min, ou qualquer dose de norepinefrina;
2. Disfunção neurológica: diminuição do nível de consciência;
3. Disfunção respiratória: relação PaO2 / FiO2 <300;
4. Disfunção renal: oligúria, creatinina> 2,0 mg/dl;
5. Disfunção hepática: PT-RNI> 1,5;
6. Disfunção hematológica: contagem de plaquetas <100.000 / mm3
Está associada a qualquer uma das seguintes condições:
1. Contagem elevada de leucócitos (> 18.000 / mm3);
2. Massa sensível palpável no quadrante abdominal superior direito;
3. Duração das reclamações > 72h;
4. Inflamação local marcada (colecistite gangrenosa, abscesso pericolecístico, abscesso hepático, peritonite biliar, colecistite enfisematosa)
A colecistite aguda de “grau I” não atende aos critérios de colecistite aguda de “grau III” ou “grau II”. Também pode ser definida como colecistite aguda em um paciente saudável sem disfunção orgânica e leves alterações inflamatórias na vesícula biliar, tornando a colecistectomia um procedimento cirúrgico seguro e de baixo risco.
Bem, agora você já está com o machado afiado quando o assunto for cirurgia de colecistite aguda! Espero que tenha feito um bom proveito! Agora, é claro: se bater a dúvida, corre aqui no nosso blog e confere de novo o artigo!
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Até a próxima!
* Colaborou Angelo Tabet Zanini, graduando de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.