Fala, pessoal! Hoje vamos abordar o tema da colecistite alitiásica. E, para começar, vamos falar deste trecho de um poema criado por Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho”. Pois bem, fazendo um paralelo com a medicina, sabemos que essa “pedra no caminho” nos ajuda em muitos diagnósticos diferenciais importantes, por exemplo, de doenças das vias biliares. Mas, será que essa pedra sempre estará lá mesmo? Vem comigo!
Seu grupo de internato está passando pela terapia intensiva nesse rodízio, e o professor apresenta o caso de um homem de 56 anos, diabético e hipertenso, em pós-operatório de cirurgia cardíaca para reconstrução de aorta abdominal (dissecção de aorta), com um quadro séptico, não ictérico, de foco inicialmente desconhecido. Como você acabou de assistir a aula de sepse do Extensivo São Paulo da Medway e está a todo vapor nos estudos para a residência, decide conversar com o plantonista do dia para entender melhor o quadro, e descobre que foi levantada a suspeita de colecistite aguda alitiásica.
Seja sincero, esse seria um dos seus diagnósticos diferenciais? Pois deveria! Essa doença, mais prevalente em indivíduos do sexo masculino que se encontram hospitalizados e graves, após grandes cirurgias ou em imunossuprimidos, representa cerca de 10% do total de casos de colecistite aguda. Além disso, está associada a maiores índices de morbimortalidade. Vamos juntos, pois, ao final deste texto, você estará seguro em elaborar uma hipótese diagnóstica à altura nas discussões do internato e nos seus plantões da vida.
Diferentemente da colecistite aguda clássica, na qual a inflamação da parede do órgão decorre de um cálculo impactado de maneira fixa no infundíbulo, na doença acalculosa temos esse mesmo processo inflamatório, contudo na ausência do fator litiásico. É, por sua vez, uma condição associada principalmente a pacientes hospitalizados, em leitos de UTI, graves, que foram submetidos a procedimentos grandes e invasivos. Nesses procedimentos, incluem-se transplante de medula, cirurgias do trauma e do aparelho cardiovascular. Não estamos mais falando daquele cenário típico de doença litiásica que acomete mulheres de 40 anos ou mais, obesas e multíparas (refrescou os “4F” na memória?).
Logo, nesse caso, a colecistite tende a ser o resultado de uma disfunção ou hipocinesia do esvaziamento da vesícula biliar em um indivíduo que foi inundado de citocinas inflamatórias, tanto em decorrência próprio contexto de doença, quanto pelos procedimentos invasivos aos quais ele foi submetido. Seu corpo não se recupera integralmente de maneira organizada, cada sistema tem seu tempo. Faz mais sentido se nos lembrarmos daquele quadro de íleo adinâmico pós-cirúrgico? Tenta fazer uma ligação.
Um ponto de extrema relevância é que, ainda que em ambas as situações – colecistite calculosa e acalculosa – a etiologia seja distinta, as complicações finais tendem a ser semelhantes, com progressão para isquemia, necrose e perfuração caso não haja controle da doença. Entretanto, ao assumirmos que o paciente alitiásico geralmente possui um perfil mais grave, os índices de morbidade e de mortalidade tendem a ser maiores nesse cenário.
Aqui não existe muito mistério (até certo ponto), pois como estamos falando de inflamação da vesícula biliar, independentemente de sua origem, os sinais e sintomas são semelhantes ao de um quadro calculoso típico. O paciente apresenta dor no quadrante superior direito do abdome, com resistência à palpação local, associada à febre, náuseas, vômito e sinal de Murphy positivo (suspensão da inspiração forçada por dor à compressão em hipocôndrio direito).
E por que dizer que é simples “até certo ponto”? Bom, nem todo paciente com colecistite alitiásica estará clinicamente apto a ponto de relatar essa história com detalhes – sempre faça referência ao perfil de paciente acometido por essa doença. Podemos nos deparar com uma febre isolada de origem indeterminada ou com uma sepse de foco desconhecido em um paciente internado, e esses serem nossos únicos comemorativos.
O diagnóstico de colecistite acalculosa é baseado na boa e velha somatória de sinais e sintomas clínicos, com achados de imagem auxiliares e na exclusão de diagnósticos menos prováveis.
Clinicamente, iremos suspeitar diante de um indivíduo com fatores de risco presentes (internação em ambiente de terapia intensiva, imunossupressão, pós-operatório de cirurgias complexas, pós-transplante de medula óssea, em vigência de nutrição parenteral total, vítimas de trauma etc.) e que se apresenta com:
Em relação aos exames de imagem, cabe aqui uma observação relevante. Enquanto na colecistite aguda litiásica a ultrassonografia possui extrema importância diagnóstica (lembra do Tokyo Guideline 2018? Mais uma refrescada!) e elevada sensibilidade e especificidade por detectar um cálculo como fator etiológico da inflamação, na doença acalculosa não temos essa facilidade. Aqui, os achados de imagem devem ser interpretados dentro do contexto clínico-epidemiológico.
E para não dizer que a ultrassonografia não nos ajuda (pois ajuda), algumas características radiológicas sugestivas de colecistite acalculosa são:
Por ser examinador dependente, nem sempre o ultrassom será definitivo para o diagnóstico. Com isso, podemos abrir mão de outro método de investigação: a tomografia computadorizada, que sugere colecistite alitiásica através de achados como aumento da espessura da parede, edema subseroso, líquido pericolecístico, distensão da vesícula, gás intramural e lama biliar.
Por fim, ainda que tenhamos a colecistografia contrastada como alternativa para análise da via biliar e para auxílio diagnóstico de colecistite, não é um exame adequado em se tratando de pacientes mais graves, que não dispõem de muito tempo para investigação, sendo que eles podem vir a complicar ou até mesmo a óbito se houver demora na elucidação do quadro.
Sendo assim, nos pacientes que se apresentarem clínica, epidemiológica e radiologicamente com os aspectos anteriormente retratados, e na ausência de qualquer evidência de outras condições clínicas que poderiam desencadear esses achados, poderemos prosseguir com a análise terapêutica visando tratar uma colecistite alitiásica.
Chegamos ao ponto-chave do tema, uma vez que o tratamento efetivo da colecistite acalculosa é fundamental para evitar uma evolução desfavorável da doença. O manejo global desses pacientes é feito, inicialmente, com suporte intensivo com administração de fluidos, correção de distúrbios hidroeletrolíticos, controle da dor e introdução de antibióticos, visando ao controle de possível doença ativa ou prevenção de infecção em sítio de vesícula inflamada (o esquema vai depender de fatores do indivíduo e fatores hospitalares).
Após estabelecermos o controle geral do paciente, ou pelo menos em parte, devemos fazer três perguntas iniciais que irão ditar nossa conduta imediata:
Se a resposta para qualquer uma dessas três perguntas for sim, estaremos diante de uma indicação clara de colecistectomia de emergência. Na ausência de todas essas situações, devemos nos basear em alguns aspectos para seguir com a decisão terapêutica:
Vale destacar que, ainda que a colecistite acalculosa seja mais comum em pacientes enfermos e internados, isso não é uma regra absoluta, sendo que podemos ter pacientes mais estáveis que desenvolvem tal condição.
Portanto, se estivermos diante de um paciente sem indicação de colecistectomia de emergência, que apresente risco cirúrgico baixo (ASA I ou II), podemos optar pela colecistectomia eletiva ou pela colecistostomia (drenagem da vesícula), a depender dos recursos locais disponíveis e da preferência do paciente. Por outro lado, na ausência de indicação de cirurgia de emergência, mas diante de um paciente crítico ou com elevado risco cirúrgicos, devemos prosseguir com colecistostomia.
No geral, os pacientes tendem a apresentar melhora do quadro após 24 a 48 horas da drenagem percutânea associada à antibioticoterapia previamente instalada. Caso não haja boa evolução, com sinais de falha terapêutica como febre persistente e sinais de sepse, podemos estar diante, por exemplo, de uma colecistite gangrenosa, do deslocamento do cateter ou de peritonite por vazamento de bile. Nesses casos, pelo risco de morte iminente, há indicação de colecistectomia de emergência.
Caso haja sucesso terapêutico na combinação de colecistostomia com antibióticos, com melhora do quadro geral do paciente associada à resolução da colecistite acalculosa e à mínima drenagem de conteúdo bilioso, podemos prosseguir com a retirada do dreno e avaliação periódica desse paciente com ultrassonografia.
Para fechar com chave-de-ouro, precisamos entender que, diferente da doença calculosa, na qual a taxa de recorrência é alta, no contexto de colecistite alitiásica, além de termos a ideia de algo “momentâneo”, com baixa taxa de recorrência, os pacientes geralmente são de alto risco. O que isso representa? Colecistite sem cálculo drenada, tratada e estável, é colecistite resolvida! Sem evidência de cálculos ou de lama biliar após melhora clínica e tratamento correto? A colecistectomia, nesse caso, não é mandatória nem necessária. Caso encerrado!
Ufa! Foi na garra e na coragem, mas pelo menos agora você tem um diagnóstico diferencial importantíssimo na manga! Lembre sempre daqui pra frente: passou visita no CTI e viu que aquele paciente masculino no pós-operatório de cirurgia cardíaca começou a se queixar de dor abdominal, náuseas, vômito e apresenta episódios febris, está na hora de começar a investigação para colecistite alitiásica. Você poderá estar contribuindo para a redução do percentual de mortalidade que chega a mais de 90% em pacientes internados. Ultrassom na mão, quadro clínico elucidado e hipóteses diagnósticas traçadas!
Agora, sim! Após anos do brilhantismo de Carlos Drummond, podemos recitar seu poema com algumas alterações que representam o avanço constante da medicina e de suas descobertas: “no meio do caminho, nem sempre, tinha uma pedra”.
Ficou com alguma dúvida acerca do assunto? Deixe um comentário aqui embaixo! Será um prazer respondê-lo!
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Colaborou para a produção deste artigo: Angelo Tabet Zanini, que cursa o 9º período de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora.
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.
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