Fala, pessoal! Tudo bem? Hoje vou direto ao ponto: este texto, sem sombra de dúvidas, está no “top 5” dos textos mais importantes que escrevi e vou escrever aqui no blog. É até compreensível que o médico generalista não domine os conceitos teóricos relacionados aos tipos e mecanismos do glaucoma (mais detalhes aqui), mas, se tem UMA característica desta doença que você precisa saber, é como identificar uma crise aguda de glaucoma. Por quê? Por um motivo simples:
“Ah, mas eu não sou oftalmologista, não sei examinar o paciente numa lâmpada de fenda…”. Não tem problema: a anamnese e a ectoscopia já são suficientes para levantar a suspeita diagnóstica e acionar rapidamente o oftalmologista de plantão.
Como sempre gosto de fazer, vamos começar do básico, relembrando a fisiopatologia do glaucoma.
O humor aquoso é um fluido que preenche a câmara anterior (espaço entre a córnea e a íris) e a câmara posterior (espaço entre a íris e o cristalino). Ele é produzido no corpo ciliar e drenado na região do ângulo iridocorneano. Observe, na figura abaixo, o trajeto intraocular do humor aquoso (setas azuis).
O aumento da produção ou a diminuição da drenagem do humor aquoso faz com que ele se acumule no interior do olho, o que eleva a pressão intraocular e, consequentemente, aumenta o risco de desenvolvimento de uma neuropatia óptica glaucomatosa. Por razões ainda não totalmente compreendidas, o aumento da pressão intraocular é o principal fator de risco para glaucoma.
De uma maneira geral, o glaucoma subdivide-se em dois principais tipos. O glaucoma de ângulo aberto é a forma mais comum da doença. Nessa condição, o ângulo iridocorneano, onde se situa a malha trabecular (principal região responsável pela drenagem do humor aquoso), está aberto. No entanto, a drenagem não é eficaz por causa de algum dano que afeta, direta ou indiretamente, a malha trabecular. Já no glaucoma de ângulo fechado, como o próprio nome sugere, esse ângulo iridocorneano está bloqueado. Na maioria dos casos, esse bloqueio é feito pela anteriorização do tecido iriano. Consequentemente, o humor aquoso se acumula e promove aumento da pressão intraocular.
Uma das formas clínicas mais temidas do glaucoma de ângulo fechado é a crise aguda de fechamento angular primário, justamente o tema central deste texto. Para entendermos a origem da crise, precisamos nos aprofundar no conhecimento fisiopatológico do glaucoma de ângulo fechado.
Algumas pessoas têm o ângulo iridocorneano mais estreito do que a população geral. Isso ocorre por uma questão genética. A título de curiosidade, asiáticos e inuítes (esquimós) são as etnias com maior proporção de ângulo estreito. Qual é o risco de ter um ângulo estreito? É que a distância entre a íris e o cristalino também é bem estreita nessas pessoas.
“Não estou entendendo aonde você quer chegar com isso…”. Calma, já vou chegar lá!
Em ambientes escuros e em situações de hiperatividade do sistema nervoso autônomo simpático, a íris sofre midríase, de modo a permitir a entrada da maior quantidade de luz possível através da pupila. Nesse processo de dilatação, o tecido iriano é puxado centrípeta e posteriormente. A consequência anatômica desse processo é que essa mudança na conformação da íris sob midríase faz com que ela se aproxime ainda mais do cristalino perto da borda da pupila. Se o indivíduo já tem, naturalmente, uma distância estreita entre a íris e o cristalino, essa aproximação promovida pela midríase pode promover um contato iridocristaliniano.
Esse contato é ruim? É péssimo! Ele simplesmente cria uma barreira mecânica que impede a passagem do humor aquoso da câmara posterior para a câmara anterior, através da pupila. Chamamos esse mecanismo de bloqueio pupilar.
No último texto sobre glaucoma, eu disse que a doença é traiçoeira e silenciosa, pois o aumento da pressão intraocular é assintomático, de modo análogo ao que ocorre com a pressão arterial sistêmica. Ah, só para tirar qualquer dúvida que ainda reste: a pressão intraocular não tem nenhuma correlação com a pressão arterial, ok? São mecanismos totalmente diferentes.
Acontece que, quando a pressão intraocular aumenta muito e de forma rápida, que é justamente o que ocorre no bloqueio pupilar, essa história de ser assintomática cai por terra: o paciente passa a se queixar de dor ocular. Muita dor. A queixa álgica é tão marcante que é comum haver náusea, vômitos e cefaleia intensa ipsilateral à dor ocular. Isso pode, em casos mais exuberantes, confundir o médico na consulta, fazendo-o pensar que o paciente apresenta alguma doença neurológica ou gastrointestinal.
O paciente em crise vai se apresentar com olho vermelho. Dezenas de doenças oftalmológicas podem dar esse sinal clínico (conjuntivite e uveíte são exemplos bem conhecidos), então é importante conhecer os outros sinais para diferenciar essas condições. Olhem com atenção a foto abaixo:
Reparem que o olho direito apresenta, além da hiperemia ocular, uma alteração na pupila: ela encontra-se em média midríase. Se pegarmos uma lanterna e direcionar a luz para esse olho, vai perceber um reflexo fotomotor diminuído ou ausente. Por isso dizemos que o olho do paciente se encontra em média midríase fixa. Nem conjuntivite nem uveíte cursam com esses sinais.
Para deixar mais didático, preparei uma tabela com os principais sinais e sintomas da crise de fechamento angular. Alguns sinais só conseguem ser visualizados no exame oftalmológico sob lâmpada de fenda, então você não precisa se preocupar tanto com eles
SINTOMAS | SINAIS |
Dor ocular intensa | Elevação marcante da PIO (> 30 mmHg) |
Cefaleia ipsilateral à dor ocular | Redução da acuidade visual |
Turvação visual | Edema de córnea |
Visão de halos coloridos | Pupila em média midríase |
Náusea e vômitos | Reflexo fotomotor ausente ou reduzido |
Câmara anterior rasa | |
Injeção ciliar | |
Abaulamento periférico da íris | |
Fechamento angular | |
Inflamação na câmara anterior |
O mais importante é saber que, apenas pela anamnese e pela ectoscopia, somos capazes de levantar uma forte suspeita e de acionar imediatamente o oftalmologista. Paciente com início recente de dor ocular intensa unilateral, turvação visual, cefaleia, náuseas? O olho está hiperemiado e em média midríase? As chances de não ser glaucoma são mínimas.
“Examinei e fiquei na dúvida, o que eu faço?”.
A crise de fechamento angular é uma emergência oftalmológica. Se o tratamento não for iniciado com rapidez, o paciente corre o risco de ficar cego daquele olho em questão de horas. Lembrem-se que a neuropatia óptica ocasionada pelo glaucoma é irreversível. Você não vai querer que o nervo óptico do seu paciente fique dessa maneira:
O objetivo imediato do tratamento é interromper a crise o mais rápido possível. O tratamento visa reverter o processo de fechamento angular por bloqueio pupilar no olho afetado e evitar que o mesmo ocorra no olho contralateral. Se quiserem saber mais sobre o tratamento dessa doença, comentem aqui embaixo que eu preparo um texto especialmente sobre isso!
Espero que este texto ajude vocês a reconhecer um quadro de crise aguda de fechamento angular. Se tiverem alguma dúvida sobre o tema, comentem aqui embaixo que a gente responde!
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Nascido em 1994, no Rio de Janeiro, graduado em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Residência em Oftalmologia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).