Como reconhecer e tratar a intoxicação por organofosforados e carbamatos no PS?

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O tema do texto de hoje deixa uma galera bastante confusa durante os plantões na emergência. Inclusive, já “quebrei a cabeça” por um bom tempo até entender o que de fato é a Síndrome Colinérgica causada pela intoxicação por organofosforados e carbamatos. A missão aqui, então, é facilitar o reconhecimento e tratamento desta síndrome. Para criar uma conexão mental rápida, muitos chamam os sinais e sintomas decorrentes da exposição a esses compostos de “síndrome molhada”. Bora entender? 

Acredite, a intoxicação por organofosforados e carbamatos ainda é muito comum! São substâncias presentes em muitos tipos de pesticidas, podendo ser causa de envenenamento tanto por exposição cutânea, quanto por inalação e ingestão. Além disso, tentativas de suicídio por ingestão desses produtos são vistas diariamente nos grandes centros de Toxicologia e devem ser reconhecidos por qualquer médico! 

A título de exemplificação, os organofosforados mais comumente encontrados são o malathion,  parathion e diazinon, enquanto os carbamatos tem como grande representante o “chumbinho”, raticida amplamente utilizado até hoje!

Fique esperto com quadros clínicos que parecem não ter razão clara!

Uma dica importante para o atendimento em Pronto-Socorro: todo quadro estranho, agudo, com manifestações neurológicas e cardiorrespiratórias sem explicação evidente deve chamar nossa atenção para intoxicações exógenas. Sempre as aborde seguindo o ABCDE do paciente que requer cuidados em serviço de emergência. Garanta que os sistemas que demandam maior atenção (neurológico, cardiológico e respiratório) estão “protegidos” e, a partir daí, busque dicas diante do quadro clínico para identificar qual intoxicação aquele paciente deve ter.  

Quer saber mais sobre a abordagem inicial do paciente com suspeita de intoxicação? Então dá uma olhada no blog, onde você encontra nosso texto sobre o assunto, para você pegar os principais atalhos na identificação de cada síndrome e dominar essa etapa fundamental do atendimento a esse perfil de pacientes.   

A Fisiopatologia manda, e a gente obedece! 

Galera, sem fosforilar demais! Mas quero trazer dois conceitos, que têm relação direta entre si e precisam estar claros no entendimento da intoxicação por organofosforados e carbamatos

1) Para criar um raciocínio mais direto na suspeição desse quadro, pensamos nas manifestações da intoxicação como uma “Síndrome Molhada”, ou seja, um conjunto de sinais e sintomas associados a secreção exagerada de fluidos corporais. E por quê isso ocorre? Bora pro segundo conceito! 

2) Entender a “Síndrome Molhada” passa por saber o que organofosforados e carbamatos fazem no organismo: eles inibem quem degrada a acetilcolina. Se o que destrói acetilcolina (no caso, a enzima acetilcolinesterase) é inibido, SOBRA ACETILCOLINA EM TODO O CORPO! Sabendo que ela tem efeitos no SNC e em receptores muscarínicos e nicotínicos do Sistema Nervoso Autônomo, compreender a “umidade” desta síndrome fica fácil.

Atuando no Sistema Nervoso Central, o excesso de acetilcolina pode gerar cefaléia, agitação, insônia, sonhos vívidos, disartria, convulsões e até coma. “Ah, mas já vi mil substâncias que causam isso!” Sim, mas calma na alma! Avalie os efeitos sobre os receptores do Sistema Nervoso Autônomo comigo! Agindo nos nicotínicos pós-ganglionares e das junções neuromusculares, a acetilcolina gera taquicardia e midríase, além de fraqueza e fasciculações. Mas, em relação a taquicardia e a midríase, existe ativação simpática por esses receptores nicotínicos sim, mas não bitola nisso não!

Os efeitos sobre os receptores muscarínicos logo se sobrepõem e, agora sim, temos a síndrome úmida clássica: broncorreia, salivação excessiva, incontinência urinária e diarreia, broncoespasmo, vômitos e dor abdominal. Além disso, surgem hipotensão, bradicardia e miose. 

A sudorese também é justificada pela ação sobre os muscarínicos! “Mas por quê, se a sudorese é função do sistema simpático?” Simples, glândulas sudoríparas reagem a estímulos colinérgicos, através desses receptores muscarínicos, e isso não impede de falarmos que são controladas pelo Sistema Nervoso Simpático! 

Para ajudar na memorização (embora você já tenha visto que é mais complexo que isso), podemos simplificar pensando numa síndrome de predomínio da hiperativação parassimpática!  Lembre-se da miose associada a bradicardia e  do intenso “relaxar e digerir” parassimpático, com hipersecretividade respiratória e do trato gastrointestinal! 

Geralmente, os sintomas de intoxicação por organofosforados e carbamatos têm início entre  30 minutos e 3 horas após ingesta/inalação, necessitando mais tempo para gerar quadro clínico quando as exposições são cutâneas (até 12h). Entretanto, a duração das manifestações varia por um detalhe que não pode ser menosprezado: a forma de inibição da aceticolinesterase

  1. Intoxicação por organofosforados: inibição irreversível.
  2. Intoxicação por carbamatos: inibição reversível.

Percebeu? A intoxicação por organofosforados em geral dura dias e pode chegar a meses, por vezes gerando até repercussões crônicas, como uma neuropatia periférica quase  exclusivamente motora, predominando em MMII. Isso ocorre principalmente com compostos muito lipofílicos, que são rapidamente capturados por tecido adiposo e tem lenta redistribuição, sem relação direta com o grau de toxicidade aguda. 

Já a inibição causada pelo carbamato é reversível, com melhora significativa após as primeiras 36-48h. Não preciso nem dizer qual é a mais mórbida, né? Apesar disso, a mortalidade por intoxicação aguda é parecida.

Por que os casos de intoxicação por organofosforados e carbamatos ficam graves?

São várias as possibilidades, mas para fixarmos as principais causas, temos:

  1. Diante de broncorreia, salivação e vômitos, broncoespasmo e fraqueza muscular (diafragmática), além de depressão respiratória central, podem surgir complicações, como pneumonia aspirativa e a FRANCA INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA.

Essa é a grande causa de morte nesse tipo de intoxicação!

  1. Soma-se a isso a possibilidade de hipotensão, convulsões e coma
  2. Lembremos ainda do possível alargamento do intervalo QT, que eventualmente culmina em Torsades de pointes, além de outras arritmias, inclusive FV e bradiarritmias sintomáticas, como o BAVT. Lembrou da ação sobre os receptores nicotínicos e muscarínicos? Não se sabe ao certo se é essa mescla de atuações a responsável por essa variedade de arritmias, até certo ponto antagônicas, ou se são secundárias a hipoxemia. Chega de bioquímica! 

Diagnóstico da intoxicação por organofosforados e carbamatos

Como vimos, a sintomatologia é o nosso guia e, agora que já sabemos quais manifestações procurar, fica fácil suspeitar da intoxicação por organofosforados e carbamatos. O diagnóstico é CLÍNICO! Diante de quadro sugestivo, já se deve tratar o paciente. 

É possível lançar mão de um exame laboratorial que sugere a intoxicação aguda: a dosagem de atividade de colinesterase plasmática, que vai estar diminuída nos casos de intoxicação recente. Lembra que os compostos inibem essa enzima? Portanto, a atividade plasmática reduzida, geralmente < 3200U/L, é um exame que pode ratificar nosso raciocínio, que insisto, deve ser disparado pela sintomatologia apresentada! Vale ressaltar que o nível de redução da enzima não tem relação confiável com a severidade do envenenamento.

Antes de continuarmos, temos uma novidade para você: nosso curso de gasometria. Por lá, você vai ter acesso a aulas com temas mais básicos até os mais complexos sobre esse exame, além de flashcards para revisão, questões para treinamento, discussões de casos clínicos e apostilas completas.

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Já sabemos reconhecer a intoxicação por organofosforados e carbamatos, vamos tratá-la? 

Nesta etapa, é essencial garantir o suporte à vida. Rebaixamento de nível de consciência, vômitos que ameaçam a via aérea ou insuficiência respiratória demandam IOT, enquanto arritmias com critérios de instabilidade devem ser revertidas de imediato. Não negligencie o ABCDE, lembre-se que existe a lógica por trás da sigla: atender primeiro o que levará a morte de forma mais rápida!

E se ainda rola aquele medinho da IOT, sugiro dar uma olhada no nosso Guia Rápido da Intubação Orotraqueal, que traz todas as informações que você precisa pra realizar esse procedimento com segurança!

Uma dica: não use succinilcolina na Intubação por Sequência Rápida, pois esta droga é metabolizada pela acetilcolinesterase plasmática, que já vimos estar inibida e, portanto, causará bloqueio neuromuscular prolongado! 

Hipotensão pode ocorrer por vasodilatação excessiva e, nesse caso, a reposição de cristalóide está indicada.

Em casos de exposição cutânea, deve-se retirar todas as roupas e acessórios, descartá-los (pois podem ser fonte de re-exposição mesmo após lavados) e irrigar as áreas expostas vigorosamente. 

Em caso de ingestão, há certa divergência entre fazer ou não lavagem gástrica na primeira hora e a tendência é por não realizá-la. O uso do carvão ativado na dose de 1g/Kg (dose máxima de 50g) é mais consensual e pode ser feito também nos primeiros 60 minutos. Vale lembrar que estas duas condutas dependem da garantia de via aérea protegida para prevenir aspiração! 

Nesta intoxicação também é possível lançar mão de antídotos:

  • A atropina! Inicialmente em bolus de 1-5mg (doses mais altas conforme maior gravidade do quadro), podendo-se repetir com doses progressivas, em geral dobradas, a cada 3-5 minutos. Ela impede os efeitos sobre os receptores muscarínicos, diminuindo a hipersecretividade (rino e broncorreia) e evitando hipotensão e bradicardia importantes.

Como avaliar a resposta à atropina? 

O objetivo principal é reverter a broncorreia e o broncoespasmo, evitando falência respiratória. Em outras palavras: “SECAR AS SECREÇÕES!”. Essa é a meta mais aceita!

Não se deve guiar a terapêutica buscando atingir midríase ou taquicardia e nem contraindicar o uso de atropina baseado nesses dois parâmetros isoladamente, pois, como já vimos, podem ser efeitos descritos na ação nicotínica da acetilcolina e até decorrentes da hipóxia e hipovolemia possivelmente presentes, não sendo, portanto, marcadores fidedignos para análise.

Atingida a melhora clínica, finalizamos a fase de ataque e devemos usar atropina em BIC, com dose de 10-20% da dose usada no ataque, a cada hora, para manutenção. Conforme o paciente melhora, pode-se titular a dose de atropina até que seja possível sua retirada. Não se assuste, podemos ter que usar centenas de miligramas de atropina! Pegou?

Vale chamar a atenção para o excesso de atropina. Lembre que ela vai antagonizar os efeitos da acetilcolina, ou seja, pode causar uma ativação simpática importante, com taquicardia,  rubor, agitação, delirium, midríase e coma.  

Eu sei, eu sei.. midríase apareceu em vários momentos durante o texto, mas só para organizar: ela pode ser desencadeada pelos receptores nicotínicos do Sistema Nervoso Autônomo, o que justifica a presença desta configuração da pupila tanto na intoxicação por organofosforados e carbamatos, quanto por ação da atropina. Ao antagonizar a ação da acetilcolina, permite-se a atuação simpática, causando a midríase que todo mundo conhece, correto? 

Então, use o raciocínio clínico: você já garantiu oxigenação, já normalizou volemia, a ausculta respiratória está melhorando, o que sugere diminuição da secreção em vias aéreas, mas percebe que o paciente está ficando muito taquicárdico, com rubor, agitado e fazendo delirium. Neste cenário, atente-se à intoxicação pela atropina e considere ajustar a dose! Use sempre um conjunto de parâmetros!

  • Pralidoxima: reverte os efeitos nicotínicos e muscarínicos. Algumas fontes recomendam seu uso em toda síndrome colinérgica. Outras, quando há sintomas por ação nicotínica, como fasciculações e fraqueza muscular importantes, especialmente respiratória. 

Ela regenera acetilcolinesterase e, por isso, costuma ser mais usada nos casos de intoxicação por organofosforados, atuando de forma sinérgica à atropina. A dose também varia de acordo com as referências, mas em geral é feito ataque de 30mg/Kg IV lento e manutenção, nos adultos, com 8-10mg/Kg/h em BIC, ou 500mg/h, outra divergência na literatura. Em crianças, a dose de manutenção é de 10-20mg/Kg/h.

Já foi dito, mas não custa relembrar: evite a infusão rápida da pralidoxima, pois isso poderá gerar laringoespasmo, rigidez importante e até PCR! Por fim, sempre use essa medicação concomitantemente à atropina, pois as “oximas” têm ação inicial de inibição adicional sobre a acetilcolinesterase, o que pode agravar a síndrome colinérgica em primeiro momento. Uma analogia válida é a ação inicialmente pró-coagulante da warfarina, que te obriga a usar heparina no começo da terapia anticoagulante, ainda que esses mecanismos sejam distintos, fechado?

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Agora você já sabe tudo sobre intoxicação por organofosforados e carbamatos

Ficou mais claro? Vai conseguir procurar os sintomas que te guiam para dar o diagnóstico de intoxicação por organofosforados e carbamatos?  Espero do fundo do coração que sim! E se não tiver encontrado o que queria sobre atendimento em plantões de emergência aqui, dá uma olhada no nosso blog.

Para facilitar um pouco mais, oferecemos a você, que deseja se aprofundar nos assuntos de Medicina de Emergência, o nosso curso PSMedway. Lá, vamos te mostrar exatamente como é a atuação médica dentro da Sala de Emergência!

Aquele abraço e até a próxima! 

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LucasFaria

Lucas Faria

Mineiro de Uberlândia, nascido em 1995, formado pela Universidade Federal de Uberlândia. Residência em Clínica Médica no Hospital de Clínicas da USP de Ribeirão Preto.