Crise tireotóxica: tudo que você precisa saber

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Se de um lado temos o coma mixedematoso em que o paciente está rebaixado, com as funções corporais hipoestimuladas, pelo outro lado temos a crise tireotóxica (também chamada de tempestade tireotóxica). 

Esta última é a vertente da hiperestimulação corporal causada pelos hormônios tireoidianos em excesso, em que o paciente tem taquicardia, agitação, tremor, sudorese, entre outros comemorativos. 

Mas vamos com calma, vamos detalhar para você o que você precisa saber para dominar uma crise tireotóxica no departamento de emergência, vem comigo que no caminho eu te explico! 

Hoje em dia é uma complicação rara de ser vista. Por que? Por que diagnosticamos e tratamos mais adequadamente o hipertireoidismo. 

Qualquer paciente pode ter? Sim, mas classicamente é visto em pacientes com hipertireoidismo (Graves, Bócio Nodular Tóxico, tireoidites na fase aguda, adenoma tóxico solitário…) não ou inadequadamente tratado associado a um fator precipitante: 

  • infecções (o principal);
  • cirurgia;
  • trauma;
  • uso de contraste;
  • interrupção de medicamentos antitireoidianos;
  • cetoacidose diabética;
  • embolia;
  • entre outros. 

É preocupante? E como! Essa descompensação é súbita, afeta diversos sistemas ao mesmo tempo e a mortalidade beira os 30% se não for tratada adequadamente.

Clínica da crise tireotóxica

Os sintomas da crise tireotóxica são diversos, todos incluindo hiperestimulação dos mais diversos sistemas orgânicos que possuímos. Eu poderia te elencar aqui um compêndio desses sintomas, mas não é esse nosso objetivo. 

Neste momento, eu quero que você crie uma imagem mental de quem vai ser o seu paciente dentro do departamento de emergência, e algumas das características, inclusive, já foram dadas:

  • será um paciente com histórico de hipertireoidismo, normalmente não ou inadequadamente tratado;
  • o paciente deve ter apresentado algum fator precipitante recente: infecção, trauma, cirurgia, uso de amiodarona, entre outros;
  • ele subitamente começa a ter sinais de hiperestimulação de múltiplos órgãos, mas marcadamente acomete o sistema nervoso central (SNC) e cardiovascular, representados por: hiperpirexia, alterações de estado mental (agitação, delirium, convulsão, coma…), taquicardia com FC > 150bpm (ou fibrilação atrial) e, eventualmente, sinais de insuficiência cardíaca (edema de membros inferiores, estertores bibasais, edema agudo de pulmão). 

Estes achados acima referem-se à crise tireotóxica em si, mas claro que, na presença de uma doença subjacente, iremos encontrar os achados da doença. No caso de doença de Graves, por exemplo, podemos ter exoftalmia, bócio simétrico e difuso, dermopatia, entre outros. 

Diagnóstico diferencial

Antes de falar sobre o diagnóstico, irei comentar sobre os diagnósticos diferenciais, pois isso também irá guiar a solicitação adequada de exames. 

Te dei algumas características principais do paciente: hiperpirexia (que você irá considerar como febre inicialmente), alterações cardiovasculares (taquicardia, sinais de insuficiência cardíaca, arritmias) e alterações de sistema nervoso central (delirium, agitação, rebaixamento de nível de consciência, coma…). 

Em resumo: febre, sintomas simpáticos e de SNC.

É prudente pensarmos e investigarmos infecção/sepse, concorda em um paciente com febre, taquicardia e alterações neurológicas, concorda?

Da mesma forma, em pacientes com taquicardia, tremores, agitação, faz-se necessário investigação de quadros de abstinência (alcoólica, benzodiazepínicos, opióides), uso de drogas (ex: cocaína). 

Por que não pensar em feocromocitoma em um quadro simpaticomimético de início abrupto? E, por fim, pode ser que não tenha passado pela sua cabeça algo tão comum e simples que pode levar a acometimento neurológico associado a sinais e sintomas simpáticos: hipoglicemia!

Veja o quão é importante o nosso hall de diagnósticos diferenciais (que também podem ser fatores desencadeantes) e como isso irá nos guiar para a solicitação mais adequada de exames complementares na investigação inicial.

Diagnóstico

Se estamos falando de crise tireotóxica, abordamos hormônios tireoidianos agindo em seus receptores e provocando seus efeitos (notadamente T3 que é o hormônio ativo). T3 e T4 livre vão estar aumentados com uma supressão de TSH. 

Aliado à clínica do nosso paciente, descrita acima, fechamos o diagnóstico clínico da crise tireotóxica. Até existem critérios diagnósticos como os de Akazi e o de Bursch e Wartofski, contudo, não são universalmente aceitos. 

Vamos solicitar outros exames para complementar nossa investigação de fatores desencadeantes e diagnósticos diferenciais. 

ObjetivoExames
Exames geraisHemograma, ureia, creatinina, TGO, TGP, glicemia, sódio, potássio
Marcadores de pior prognósticoBilirrubinas, albumina
Avaliação e atividade osteoclásticaCálcio e fosfatase alcalina
Avaliação de taquiarritmiasEletrocardiograma
Investigação de focos infecciososRx de tórax, urina tipo 1
Alterações de coagulação (ocorre se disfunção hepática associada)Coagulograma
Avaliação de tireotoxicose por amiodaronaCintilografia de tireóide*

* deixei este ponto específico para este exame. Obviamente não é um exame disponível de prontidão, bem como não estará na sua lista de exames iniciais. É apenas para você lembrar. A amiodarona pode causar tireotoxicose, basicamente, dois mecanismos: tipo 1, que está associado à sobrecarga de iodo, causando o efeito Jod-Basedow, e tipo 2, associado a uma tireoidite destrutiva que causa que libera uma carga gigante de hormônios tireoidianos na circulação. No tipo 1, a cintilografia de tireoide irá mostrar captação normal ou aumentada, enquanto no tipo 2 será baixa ou ausente.

Tratamento da crise tireotóxica

Geral

Novamente: estamos lidando com uma condição potencialmente ameaçadora à vida, causada pelo excesso de hormônios tireoidianos! Logo, nosso tratamento é focado basicamente neles.

Em primeiro lugar, o ambiente adequado para manejar os pacientes deve ser a unidade de terapia intensiva (UTI), devido à gravidade e riscos aos quais esses pacientes estão sujeitos. Lembre, também, que estamos lidando com uma doença que foi gerada por um fator desencadeante, logo, se possível, devemos buscar resolvê-lo! 

Medidas de suporte são também bem-vindas aos pacientes: se há indícios de hiperpirexia, dipirona ou paracetamol podem ser indicados. 

É possível que os pacientes evoluam com disfunção cardíaca, apesar de nossas medidas. Sendo assim, o manejo pode ser realizado com inotrópicos, furosemida, a depender da classificação clínica da insuficiência cardíaca aguda. 

Agindo nos hormônios já circulantes

Chegamos à parte dos hormônios tireoidianos. Inicialmente, vamos combinar que já há hormônio na circulação, causando seu efeito deletério, concordam? O que podemos fazer em relação a eles? 

Duas coisas: lembra-se de que a grande maioria do hormônio liberado é sob a forma de T4, que posteriormente será convertido em T3 (o hormônio ativo) através das desiodases dos tecidos periféricos. 

Uma excelente opção de droga são os betabloqueadores: eles irão agir impedindo a conversão periférica de T4 em T3, mas também irão atuar nos efeitos simpaticomiméticos causados pelo excesso de hormônio.

Outra medicação que também reduz essa conversão periférica são os corticoides (que também são benéficos pelo fato destes pacientes apresentarem o risco de insuficiência adrenal subjacente). 

Por fim, uma informação que, por vezes, lemos e não damos tanta importância nos livros de fisiologia: os hormônios tireoidianos livres participam da circulação entero-hepática, sendo reabsorvidos no intestino! Logo, iremos atuar nesta via também, impedindo a absorção intestinal e facilitando a excreção fecal do mesmo, através da colestiramina!

DrogaPosologiaObjetivo
BetabloqueadorPropanolol 0,5mg EV a cada 15minMetoprolol 5mg EV a cada 10-15minPropanolol 40-80mg VO 6/6 horasMetoprolol 50-100mg VO 12/12 horasAtenolol 50-100mg VO 12/12 horasReduzir conversão periférica de T4 em T3Controle de sintomas
CorticosteróidesHidrocortisona 100mg EV 8/8 horas
Dexametasona 2-5mg EV 6/6 horas
Impedir conversão periférica de T4 em T3
Colestiramina4g VO 6/6 horasImpedir a reabsorção êntero-hepática 

Impedindo a síntese de novos hormônios

Se por um lado queremos combater o que já foi formado, queremos também “fechar a torneira” da síntese de novos hormônios, caso contrário estaremos enxugando gelo, concordam?

As medicações ideias visando essa finalidade são justamente as medicações que nosso paciente deveria estar tomando para prevenir que seu hipertireoidismo estivesse sendo inadequadamente tratado: as tionamidas!

Marcadamente, temos duas principais: o propiltiouracil (PTU) e o Metimazol. O PTU é a droga de escolha por apresentar um efeito adicional benéfico nestes casos: também inibir a conversão periférica de T4 em T3! 

Temos uma ressalva prática a essas medicações: não há formulação parenteral. Logo, se o paciente apresenta rebaixamento do nível de consciência haverá a necessidade de passagem de sonda nasoenteral para administração do medicamento ou uso via retal.

DrogaPosologiaObjetivo
TionamidasPropiltiouracil 600-1.000mg ataque +  200-300mg 4/4 ou 6/5 horas (dose total deve ser > 1.000mg dia) – preferencial
Metimazol: 20mg a cada 4-8 horas
Impedir a síntese de novos hormônios tireoidianos
PTU: adicional de impedir a conversão periférica de T4 em T3

Impedindo a liberação

Por fim, vamos combinar também que já existe hormônio pré-formado na glândula, estocado dentro dos coloides, ele simplesmente ainda não foi liberado para a circulação. Vamos agir nessa via também. 

As medicações indicadas nestes casos são as soluções iodadas! Não deixei este último item por acaso. Entenda que, se dermos uma sobrecarga de iodo a um paciente com uma glândula hiperfuncionante, estaremos correndo um risco dessa sobrecarga de iodo gerar o efeito Jod-Basedow, piorando o quadro clínico do nosso paciente! 

O que queremos, na verdade, é produzir o efeito Wollf-Chaikoff. Para isto, as soluções iodadas devem ser administradas no mínimo 1 hora (e idealmente 2-3 horas) após a administração das tionamidas.

DrogaPosologiaObjetivo
Soluções iodadasÁcido iopanoico (Telepaque): de escolha. 1g a cada 8 horas no primeiro dia, seguido de 500mg de 12/12 horas nos dias subsequentes
Lugol ou iodeto de potássio: 4-8 gotas a cada 6-8 horas
Principalmente impedir a liberação de novos hormônios tireoidianos na circulação
Carbonato de lítio300mg 6/6 horas, devendo ser medida a litemia sérica objetivando níveis de 1mg/dLO mesmo objetivo, reservado para pacientes alérgicos a iodo

Terapias Adjuvantes

Estas outras terapias não são indicadas de forma rotineira e possuem objetivo de reduzir a circulação de hormônios tireoidianos já formados: diálise periteoneal, hemoperfusão com carvão/resinas e/ou plasmaférese. 

Organizando o tratamento da crise tireotóxica

Muita informação, muito remédio junto, muita posologia. Mas calma, vamos organizar o tratamento dentro de um fluxograma para você.

Fluxograma - tratamento da crise tireotóxica

Curtiu saber mais sobre a crise tireotóxica? 

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Referências

  1. Velasco, I., Neto, R., Souza, H., Marino, L., Marchini, J. and Alencar, J., 2021. MEDICINA DE EMERGÊNCIA – ABORDAGEM PRÁTICA. 15th ed. São Paulo: Manole, pp.426-437.
  2. UpToDate. Uptodate.com. Disponível AQUI: <Acesso em: 15  mar.  2022.>

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RodrigoFranco

Rodrigo Franco

Paraense, forjado em 1990. Residência em Clínica Médica pelo Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). Neto de professor que me transferiu o amor pelo magistério. Apaixonado pelo raciocínio clínico, por uma boa resenha, viagens e novas experiências. Siga no Instagram: @rodrigocfranco