De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), houve uma expressiva redução da mortalidade por diarreias infecciosas, como a diarreia aguda, em crianças com menos de 5 anos em todo o mundo — e no Brasil não foi diferente (ufa!). Por exemplo, em 1980, a diarreia ocupava o segundo lugar (24,3% dos óbitos) como causa de mortalidade infantil em nosso país. Já em 2005, passou para a quarta posição e foi responsável por apenas 4,1% dos óbitos.
Agora, como diminuiu tanto assim? Ora, além das melhorias de condições de vida da população no decorrer dos anos, também houve evolução, consolidação e disseminação do tratamento da diarreia aguda e da desidratação! Portanto, é fundamental que a gente reconheça e trate o quanto antes essa doença. E é exatamente esse o assunto do post de hoje!
Bora lá?
Por definição, é considerada diarreia a ocorrência de 3 ou mais evacuações amolecidas ou líquidas nas últimas 24 horas. Pode-se falar em aguda nos quadros que duram até 14 dias. Além disso, pode ser aquosa ou com sangue (disenteria).
Porém, a história e o exame físico são essenciais para uma conduta adequada. Alguns pacientes estão mais propensos a ter complicações, tais como: idade menor que 2 meses, doenças de base (por exemplo, diabetes melito), insuficiência renal ou hepática, vômitos persistentes, perdas diarreicas de grande volume e frequentes e a percepção dos pais da presença de sinais de desidratação.
Pelo exame físico, é importante avaliar o estado de hidratação e nutricional, o estado de alerta, a capacidade de ingerir líquidos e a diurese da criança.
O principal indicador de desidratação é o percentual de perda de peso, que deve ser acompanhado tanto ambulatorialmente quanto em regime de internação hospitalar. Por isso, é fundamental que seja mensurado o peso exato na avaliação inicial do paciente. É considerado perda de peso de até 5% como desidratação leve; entre 5% e 10% desidratação moderada e mais de 10% significa desidratação grave. Essa classificação é usada para estimar o volume necessário para correção do déficit corporal de fluído devido a doença diarreia.
Outro ponto importante para avaliação da hidratação são os achados do exame clínico. Com isso, é necessário atenta-se ao exame do estado geral, como os olhos, se há lágrimas ou não, se o paciente tem sede, a presença do sinal da prega cutânea, o nível de consciência, o pulso e o enchimento capilar. Outros achados também podem indicar gravidade, como nível de alerta, taquicardia, pulso fraco, aumento do tempo de enchimento capilar, extremidades frias e nível de alerta.
Observar | A | B | C |
Condição | Bem alerta | Irritado, intranquilo | Comatoso, hipotônico* |
Olhos | Normais | Fundos | Muito fundos |
Lágrimas | Presentes | Ausentes | Ausentes |
Boca e língua | Úmidas | Secas | Muito secas |
Sede | Bebe normalmente | Sedento, bebe rápido e avidamente | Bebe mal ou não é capaz de beber* |
Examinar | A | B | C |
Sinal da prega | Desaparece rapidamente | Desaparece lentamente | Desaparece muito lentamente (mais de 2 segundos) |
Pulso | Cheio | Rápido, débil | Muito débil ou ausente* |
Enchimento capilar* | Normal (até 3 segundos) | Prejudicado (3 a 5 segundos) | Muito prejudicado (mais de 5 segundos)* |
Conclusão | Não tem desidratação | Se apresentar dois ou mais dos sinais descritos acima, existe desidratação | Se apresentar dois ou mais dos sinais descritos, incluindo pelo menos um dos assinalados com astericos, existe desidratação grave |
Tratamento | Plano A Tratamento domiciliar | Plano B Terapia de reidratação oral no serviço de saúde | Plano C Terapia de reidratação parenteral |
Após realizar o diagnóstico, de acordo com os critérios mencionados, e realizado o exame clínico completo, deve-se realizar o tratamento, que é dividido em 3 categorias: plano A, plano B e plano C.
No plano A, o paciente está com diarreia, mas está hidratado. Nesse caso, a prevenção da desidratação deve ser feita em domicílio, seguindo as seguintes recomendações:
– Até 6 meses: 10 mg/dia.
– Maiores de 6 meses: 20 mg/dia.
Já no Plano B, o paciente está com diarreia associada a algum grau de desidratação, e deve-se administrar o soro de reidratação oral sob supervisão médica, manter o aleitamento materno e suspender outros alimentos (jejum apenas durante o período da terapia de reparação por via oral). Após o término desta fase, são retomados os procedimentos do Plano A. Nesta fase também está indicada a suplementação de zinco.
Portanto, nesta fase, é necessário:
– A quantidade dependerá da sede do paciente.
– A SRO deve ser administrada de forma contínua, até desaparecimento dos sinais de desidratação.
– O paciente deverá receber de 50 a 100 ml/kg para ser administrado em 4-6 horas.
– Se os sinais desaparecerem, voltar ao Plano A.
– Se continuar desidratado, indicar sonda nasogástrica (gastróclise).
– Se o paciente evoluir para desidratação grave, prosseguir com o Plano C.
– Reconhecer os sinais de desidratação.
– Preparar e administrar a SRO.
– Praticar medidas de higiene pessoal e domiciliar.
Por último, no Plano C, o paciente apresenta diarreia com desidratação grave, é indicado, portanto, terapia de reidratação por via parenteral (reparação ou expansão). Em geral, o paciente deve ser mantido no serviço de saúde, até que tenha condições de se alimentar e receber líquidos por via oral de forma adequada. Idealmente deve-se conseguir a punção de veia calibrosa (podendo chegar a dois acessos, principalmente nos casos de choque hipovolêmico). Caso não seja possível, considerar a infusão intraóssea.
Podem ser utilizados os seguintes critérios para internação hospitalar: choque hipovolêmico, desidratação grave, manifestações neurológicas, vômitos biliosos ou de difícil controle, falha na terapia de reidratação oral, suspeita de doença cirúrgica associada ou falta de condições para tratamento domiciliar ou ambulatorial.
O Plano C contempla 2 fases para todas as faixas etárias: a fase rápida e a fase de manutenção e reposição. A seguir, o quadro 1 apresenta o plano C conforme a recomendação do Ministério da Saúde. Já o quadro 2 apresenta opções para a terapia de reidratação parenteral, segundo diferentes recomendações:
FASE RÁPIDA (EXPANSÃO) – MENORES DE 5 ANOS | ||
Solução | Volume | Tempo de administração |
Soro fisiológico a 0,9% | Iniciar com 20 ml/kg de peso. Repetir essa quantidade até que a criança esteja hidratada, reavaliando os sinais clínicos após cada fase de expansão administrada. | 30 minutos |
Para recém-nascidos e cardiopatas graves começar com 10 ml/kg de peso. | ||
FASE RÁPIDA (EXPANSÃO) – MAIORES DE 5 ANOS | ||
Solução | Volume total | Tempo de administração |
1° soro fisiológico a 0,9% | 30 ml/kg | 30 minutos |
2° Ringer Lactato | 70 ml/kg | 2 horas e 30 minutos |
FASE DE MANUTENÇÃO E REPOSIÇÃO PARA TODAS AS FAIXAS ETÁRIAS | ||
Solução | Volume em 24 horas | |
Peso até 10 kg → | 100 ml/kg | |
Soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9% na proporção de 4:1 (manutenção) | Peso de 10 a 20 kg → | 1000 ml + 50 ml/kg de peso que exceder 10 kg |
Peso acima de 20 kg → | 1500 ml + 20 ml/kg de peso que exceder 20 kg | |
Soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9% na proporção de 1:1 (reposição) | Iniciar com 50 ml/kg/dia. Reavaliar esta quantidade de acordo com as perdas do paciente. | |
KCl a 10%* | 2 ml para cada 100 ml de solução da fase de manutenção. |
Deve-se avaliar o paciente continuamente. Se não houver melhora da desidratação, aumentar velocidade de infusão!
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Voltando ao nosso tema, as recomendações são:
– Quando o paciente puder beber, iniciar reidratação por via oral com SRO, mantendo reidratação venosa.
– Interromper a reidratação parenteral somente quando paciente puder ingerir SRO em quantidade suficiente para se manter hidratado.
– Lembrar que a quantidade de SRO a ser ingerida deve ser maior nas primeiras 24 horas.
– Observar o paciente por pelo menos 6 horas.
Ministério da Saúde do Brasil | Fase rápida (expansão): < 5 anos: 20 ml/kg de SF a cada 30 minutos. Repetir até que a criança fique hidratada. > 5 anos: 30 ml/kg de SF em 30 minutos + 70 ml/kg de Ringer Lactato em 2,5 horas Fase de manutenção e reposição (qualquer idade): SG 5% + SF na proporção 4:1 (volume da regra de Holiday & Segar + KCl 10% 2 ml para cada 100 ml Fase reposição: SG 5% + SF partes iguais — iniciar com 50 ml/kg/dia. Reavaliar de acordo com as perdas diarreicas. |
OMS, 2005 | Lactantes e crianças: 100 ml /kg de Ringer Lactato sendo: < 12 meses: 30 ml/kg em 1 hora e 70 ml/kg em 5 horas > 12 meses: 30 ml/kg em 30 minutos e 70 ml/kg em 2,5 horas Nota: se o Ringer Lactato não estiver disponível, usar SF. |
ESPGHAN, 2014 | Se choque: 20 ml/kg de SF em 20 minutos, duas vezes; Se desidratação grave: 20 ml/kg de SF por hora por 2–4 horas; Após a reparação: usar soro de manutenção com concentração de sódio de pelo menos 77 mmol/litro para prevenção de hiponatremia. |
Todas as diretrizes são unânimes que o aleitamento materno deve ser mantido e incentivado nos quadros diarreicos. Quando necessário, recomenda-se jejum durante o período de reversão da desidratação (expansão e reparação). A alimentação deve ser reiniciada de acordo com o esquema habitual do paciente, logo que essa etapa for concluída (no máximo de 4 a 6 horas). Na diarreia aguda, não há indicação de utilizar fórmulas sem lactose, apenas em pacientes hospitalizados, ou com diarreia persistente (>14 dias) tratados em regime ambulatorial ou hospitalar.
De acordo com a OMS, deve ser usado em menores de 5 anos, durante 10 a 14 dias, uma vez que pode reduzir a duração do quadro de diarreia, a probabilidade da diarreia persistir por mais de 7 dias e a ocorrência de novos episódios de diarreia aguda nos 3 meses subsequentes. A dose recomendada é de 20 mg por dia para maiores de 6 meses e 10 mg por dia para menores de 6 meses.
Os probióticos são microrganismos vivos, que quando consumidos em quantidades ideais, proporcionam efeito benéfico para a saúde. A OMS e o Ministério da Saúde não mencionam o uso de probióticos no tratamento da diarreia aguda. Porém, a ESPGHAN e a diretriz Íbero-Latinoamericana consideram que podem ser utilizados como coadjuvantes no tratamento da diarreia aguda. As cepas consideradas como tendo evidências suficientes foram: Lactobacillus GG, Saccharomyces boulardii e Lactobacillus reuteri DSM 17938.
A racecadotrila é um inibidor da encefalinase. A ESPGHAN e a diretriz Íbero-Latinoamericana consideram que a racecadotrila pode ser utilizada como coadjuvante no tratamento da diarreia aguda, no intuito de reduzir perdas diarreicas e duração do quadro. É um medicamento eficaz e seguro, que não interfere na motilidade intestinal. A dose recomendada é de 1,5 mg/kg de peso corporal, 3 vezes ao dia. É contraindicado para menores de 3 meses.
Depois de tudo isso que foi falado, não dá mais para comer bola, né? A diarreia aguda vem diminuindo de incidência no mundo inteiro, especialmente no Brasil! E justamente por conta do reconhecimento da doença pelos profissionais de saúde, através de uma boa anamnese e exame físico, bem como o reconhecimento de gravidade e agilidade no tratamento que adquirimos conforme os anos.
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Até mais!
*Colaborou Karina Hayama
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.
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