Fala, galera! Que a diarreia aguda é uma das doenças comuns da infância, todos nós aqui já sabemos. Da mesma forma, já estamos acostumados a diagnosticar e estabelecer as medidas gerais de tratamento. No texto de hoje, vamos mostrar e explicar os detalhes da diarreia crônica em Pediatria para que você aprimore cada vez mais os seus conhecimentos.
E aí, bora lá?
As definições mais objetivas de diarreia se baseiam em aumento do volume ou peso fecal e devemos sempre usar estes parâmetros para o paciente pediátrico internado:
No paciente pediátrico ambulatorial, fica complicado levar em conta o peso das fezes, por isso, definimos diarreia também como aumento da frequência evacuatória e/ou diminuição da consistência das fezes em relação ao basal. De modo mais objetivo, usando a Escala de Bristol, consideramos os tipos 6 e 7 como diarreia!
Já em relação à duração, classificamos a diarreia como aguda (até 2 semanas de evolução), persistente (até 4 semanas) e crônica (mais do que 4 semanas).
Mas fique ligado! Algumas fontes bibliográficas não consideram o termo “persistente”, especialmente quando se referem a dados de países ricos/desenvolvidos, classificando a diarreia apenas como aguda (até 4 semanas de duração) ou crônica (mais do que 4 semanas).
A prevalência de diarreia crônica na infância varia amplamente no mundo e as causas são diversas, sendo mais comum nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Isso porque é comum a cronificação da diarreia aguda tanto por desnutrição, quanto por episódios recorrentes de quadros diarréicos agudos.
Já nos países desenvolvidos, as causas mais comuns se relacionam a fatores dietéticos (diarreia funcional), medicamentosos, doenças causadoras de má absorção e má-digestão de nutrientes, imuno mediada (sempre excluir doença celíaca!) ou mesmo as causas infecciosas (em especial em paciente imunocomprometido).
Já que estamos no Brasil, um país enorme, em desenvolvimento, mas que apresenta grande variabilidade socioeconômica, devemos sempre levar em conta a história social e epidemiológica do nosso paciente, excluir causas infecciosas e, então, ponderar os outros contextos acima!
Mecanismo fisiológico: osmótica (aquosa e induzida pela dieta), secretória (aquosa e relacionada ao transporte de eletrólitos), inflamatória (presença de muco e sangue) e relacionada a motilidade (hipo ou hipermotilidade).
Clinicamente, é mais interessante classificá-la pela causa e outras características clínicas, como abaixo (se liga: itens com * são as causas mais comuns):
— Fisiológica – Intolerância adquirida à lactose* — Relacionada a infecções – Diarreia mal-absortiva pós-infecciosa ⬪ Intolerância secundária à lactose ou outros carboidratos sem inflamação residual* ⬪ Inflamação residual com mal absorção generalizada Infecção recorrente ou persistente ⬪ Imunodeficiência primária (SCID, IPEX, CVID) – Infecção recorrente ou persistente ⬪ Imunodeficiência secundária ⬪ Causada por microrganismos difíceis de erradicar, como C. difficile ou S. typhi — Induzida por drogas – Associada a antibióticos* – Não associada a antibióticos ⬪ Com lesão de mucosa (ex: laxantes, IBP, ISRS, orlistat) ⬪ Com lesão de mucosa (ex: 5-FU, AINES) — Funcional – Diarreia funcional do lactente e do pré-escolar* ⬪ Geralmente associada com ingestão de açúcar ou excesso de carboidratos – Síndrome do intestino irritável subtipo diarreico — Imuno mediada – Causas mais comuns ⬪ Doença celíaca* ⬪ Doença inflamatória intestinal ⬪ Proctocolite alérgica induzida por proteína alimentar (ex: leite de vaca)* ⬪ Enterocolite induzida por proteína alimentar (FPIES) – Causas incomuns: ⬪ Gastroenterite eosinofílica ⬪ Colite microscópica linfocítica ou colagenosa ⬪ Síndrome autoimune poliglandular ⬪ Mastocitose cutânea ou sistêmica — Má absorção de gordura (esteatorréia) – Insuficiência pancreática exócrina ⬪ Fibrose cística* ⬪ Síndrome de Shwachman-Diamond – Insuficiência de ácidos biliares ⬪ Ressecção de íleo terminal ⬪ Desconjugação de sais biliares (ex: supercrescimento bacteriano de intestino delgado) – Mal-absorção mucosa ⬪ Síndrome de intestino curto* ⬪ Doença de Crohn de delgado, difusa e severa — Tumores neuroendócrinos e distúrbios relacionados – Neurofibromatose (associada a diversos tipos de tumores neuroendócrinos) – Neuroblastoma e ganglioneuroblastoma (ex: VIPoma) – Neoplasia endócrina múltipla tipo 2B — Anomalias congênitas associadas com obstrução intestinal – Pseudo-obstrução crônica intestinal – Doença de Hirschsprung com enterocolite – Mal-rotação intestinal com volvo intermitente — Outros mecanismos – Supercrescimento bacteriano de intestino delgado* – Mal-absorção de ácidos biliares – Gastroenteropatia perdedora de proteínas – Diarreia factícia (auto induzida – atenção para síndrome de Munchausen) – Diarreias e enteropatias congênitasVasculites |
Aqui vale a máxima que você já conhece muito bem: a clínica é soberana! Não adianta se apressar com os exames: para escolhê-los, você vai precisar primeiro de uma bela anamnese e de um exame físico detalhado!
Não deixe passar na sua história e no seu exame físico os fatores abaixo.
O despertar noturno para evacuar ou por:
Os sinais físicos do exame geral podem chamar a atenção para a causa da diarreia (ex: outros sinais de atopia na proctocolite alérgica por alergia não IgE mediada à proteína do leite de vaca).
Além disso, o início agudo de dor abdominal importante e distensão abdominal sugerem obstrução intestinal ou enterocolite, necessitando de avaliação de urgência, principalmente se há sangue nas fezes. Ponderar, ainda, apresentação inicial de doença inflamatória intestinal (DII).
Por sua vez, o exame perianal, eventualmente com toque retal, é importante, dependendo da suspeita clínica.
O início precoce (neonatal ou em lactentes < 6 meses) de diarreia aquosa sugere fortemente causas de diarreias congênitas, o que merece uma avaliação precoce do gastroenterologista pediátrico, pois pode ser grave e fatal. (as minúcias desses diagnósticos diferenciais não estão sendo abordados neste texto).
Já o início agudo de uma diarreia crônica sugere que o gatilho foi uma diarreia aguda cronificada (por intolerância secundária à lactose, associada ao uso de antibióticos, por desnutrição ou imunodeficiência primária ou secundária). Por fim, o início gradual de diarreia branda em lactentes e pré-escolares saudáveis sugere diarreia funcional.
Muitos padrões diferentes de diarreia e de tempo de evolução após introdução do glúten na dieta (ou seja, apenas após a introdução alimentar) estão associados à doença celíaca, sendo fundamental excluí-la.
A diarreia temporalmente associada à ingestão de alimentos específicos pode sugerir intolerância à lactose (e de outros carboidratos) e alergias alimentares, sendo importante definir bem os alimentos relacionados e a temporalidade precisa de evolução dos sintomas. Lembre-se: a alergia alimentar é classificada em hipersensibilidade não IgE mediada (tardia, > 2 horas após exposição) e IgE mediada (imediata, < 2 horas).
Centenas de medicações podem causar diarreia e outros sintomas gastrointestinais, principalmente os antibióticos. Outros que chamam a atenção: inibidores da bomba de prótons, substitutos do açúcar, vitamina C, agentes antineoplásicos, alguns anti-hipertensivos e o uso abusivo de laxantes
Alguns sintomas associados à diarreia crônica em Pediatria são:
Já no histórico familiar, pode-se encontrar:
Como estamos no Brasil, exclua sempre causas infecciosas. Na prática, em uma criança com diarreia crônica no nosso contexto, sempre precisamos excluir as causas infecciosas primeiro, tanto pela alta prevalência local de determinados patógenos, quanto pelas situação sanitária em algumas regiões, além da presença das condições já descritas acima que favorecem a cronificação de uma diarreia aguda.
Sendo assim, solicite 3 amostras, em dias alternados de:
Depois disso e antes de mais nada, exclua doença celíaca, visto as diferentes formas de evolução existentes dessa doença. Para isso, solicite inicialmente apenas o anticorpo anti-transglutaminase tecidual IgA (IgA-tTG) e IgA total (para excluir a deficiência de IgA, que pode causar resultado falso negativo do IgA-tTG). Demais testes podem ser solicitados ou não conforme o contexto clínico.
Em escolares e adolescentes a diarreia crônica pode ser funcional, causada por intolerância adquirida à lactose (ou hipolactasia) e por síndrome do intestino irritável (que também tem critérios de Roma IV específicos).
Determine pelas características clínicas e laboratoriais das fezes se a diarreia é aquosa, gordurosa ou inflamatória. Eventualmente, o aspecto é misto (ex: causas infecciosas podem ter componente aquoso e inflamatório).
Uma vez excluídas doença celíaca e diarreia funcional, classifique a diarreia aquosa em osmótica (induzida pela dieta) ou secretora (relacionada ao transporte de eletrólitos). Em alguns casos esses subtipos podem se sobrepor.
Cálculo do Gap osmótico | ||
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Fórmula do Gap osmótico fecal = 290 – osmolalidade fecal estimada | ||
Osmolalidade fecal estimada = 2 x ([Na fezes] + [K fezes]) | ||
Diferenciação laboratorial entre diarreia secretora e diarreia osmótica | ||
Teste laboratorial | Secretora | Osmótica |
Gap osmótico | < 50 mOsm/kg | > 75 mOsm/kg |
ph fecal | geralmente > 6 | < 6 |
Diarreia osmótica: melhora com teste de jejum, tem baixa concentração de Na (<70mEq/L) e alto Gap osmótico (> 75mOsm/kg). Geralmente, é menos volumosa que a secretória (<200ml/dia). A presença de substâncias redutoras ou baixo ph fecal (<6) sugere má absorção de carboidratos.
Diarreia secretora: geralmente, se associa a grande volume de diarreia aquosa que persiste mesmo com jejum, devido à secreção de eletrólitos pela mucosa intestinal. O gap osmótico é baixo (<50 mOsm/kg), mas atenção para falso positivo se contaminação com água ou urina (diluição da amostra).
A diarreia secretora pura é rara, mas pode ocorrer por infecções (E. coli enterotoxigênica e cólera, com atenção para as causas de cronificação da diarreia aguda que já comentei aqui!), algumas diarreias congênitas, determinados tumores neuroendócrinos, excesso de sais biliares chegando até o cólon (diarreia colerética) em pacientes com colelitíase (raro), ressecção ileal (já que os sais biliares são reabsorvidos no íleo terminal) e algumas causas genéticas.
Misto: possui componentes osmótico e secretor e gap fecal entre 50-75 mOsm/kg. Causada por inúmeros vírus e bactérias e doenças inflamatórias crônicas, com a própria DII, que cursa com má absorção intestinal por lesão crônica da mucosa.
A presença de sangue sugere diarreia inflamatória, e a inflamação pode ser confirmada pela elevação de calprotectina fecal.
Exemplo mais comum do uso racional da calprotectina fecal: paciente com história e achados sugestivos de DII, excluídas as causas mais comuns mencionadas, com calprotectina fecal elevada (especialmente se com persistência entre duas coletas). Devemos, então, prosseguir com EDA + colono com 2 biópsias de todos os segmentos intestinais para confirmação de DII.
Pacientes com diarreia aparentando conter gordura devem ser investigados para determinar a má absorção de gorduras (esteatorréia). A acurácia de ambos testes abaixo varia conforme a suspeita clínica de esteatorréia.
A esteatorréia pode ocorrer por doenças da mucosa que evoluem com síndrome disabsortiva ou insuficiência pancreática. Todos devem ser investigados para doença celíaca! Se a gordura fecal é confirmada com os testes diagnósticos ou há alta suspeição de esteatorréia, devemos investigar causas específicas de insuficiência pancreática, em especial fibrose cística e síndrome de Shwachman-Diamond.
Seguindo esse passo a passo acima descrito, você conseguirá direcionar melhor a solicitação ou não de testes diagnósticos mais específicos para cada hipótese diagnóstica. Assim, descarte inicialmente doenças infecciosas e estruturais pertinentes à história clínica do paciente.
Em seguida, solicite testes diagnósticos conforme a categorização inicial da diarreia crônica, seguidos de endoscopia/colonoscopia com biópsias e testes genéticos se pertinentes, para confirmar o diagnóstico e definirmos então o manejo. Na suspeita clínica de algumas das patologias mais importantes abaixo, pondere também:
Fibrose cística: doença pulmonar, failure to thrive, infecções de repetição e outros mais. Solicite o teste de cloro no suor.
Síndrome de Shwachman-Diamond: neutropenia ou pancitopenia, insuficiência pancreática exócrina, anormalidades esqueléticas. Solicite testes indiretos da função pancreática (redução da elastase fecal e/ou da quimiotripsina fecal).
O tratamento da diarreia crônica em pediatria é direcionado à doença de base diagnosticada, incluindo o manejo da desnutrição quando esta estiver presente.
Há evidência científica limitada quanto à eficácia para recomendação de probióticos no tratamento da diarreia crônica. Não há também recomendação do uso de drogas antidiarreicas (antimotilidade) nesse contexto, exceto em casos muito selecionados e acompanhados pelo médico especialista, a depender da etiologia da doença.
O tema é extenso, mas organizando melhor o raciocínio fica fácil entender! Se você gostou, aproveite e leia um pouco mais sobre esteatorréia neste outro texto do nosso site (link do texto)!
Sobre a diarreia crônica em Pediatria, é isso! Se você quiser conferir mais conteúdos de Medicina de Emergência, dê uma passada na Academia Medway. Por lá, disponibilizamos diversos e-books e minicursos completamente gratuitos!.
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Nascida em Campo Grande-MS, mas praticamente uma nômade! Tem o Rio de Janeiro como sua cidade de coração, onde também começou sua relação de amor com a medicina, graduada em 2016 pela UERJ. No 4º ano da faculdade, foi viver por 14 meses em Dundee, na Escócia, onde fez intercâmbio em Neurociências na Universidade de Dundee. Morou também em Botucatu, onde fez 3 anos de Residência Médica em Pediatria no HC FMB UNESP. Residência também em Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica no ICr do HC FMUSP. Considera a oportunidade de ensinar o seu momento de maior aprendizado.