Fala, pessoal, todos bem? Espero que sim, porque o tema de hoje é simplesmente essencial! Como entender as diversas arritmias que encontraremos no pronto-socorro sem dominar o eletrocardiograma normal? Ele é a referência, o modelo mental que precisamos construir para, diante de um eletrocardiograma em determinada situação clínica, encontrarmos o que é patológico no exame. Então, bora juntos?
Para estimular o interesse por temas relacionados, vamos fazer, ao longo do texto, observações breves sobre algumas alterações eletrocardiográficas que vão complementar o entendimento do ECG sem alterações, beleza?
O segredo é fisiologia!
Galera, não vou falar aqui de potencial de ação, de canais de Na e K. Mas alguns princípios do ECG são baseados em conceitos-chave, sobre a origem do estímulo elétrico no miocárdio.
No nosso e-book gratuito ECG Sem Mistérios, nós contamos tudo o que todo médico precisa saber sobre eletrocardiograma, incluindo as 5 principais etapas na hora da análise sistemática de um ECG.
Tudo começa no nó sinusal, ou nó sinoatrial, na porção superior do Átrio Direito (AD). Essa região tem um automatismo cardíaco predominante e, portanto, determina a frequência cardíaca.
Saindo dessa fonte, o estímulo despolariza o AD (miócitos adjacentes) e atravessa para o outro lado, a fim de alcançar o Átrio Esquerdo (AE). Percebeu que o AE se despolariza um pouco depois do AD? Isso vai fazer sentido lá na frente, confia!
Sendo que:
Despolarizados os átrios, o estímulo atinge o nó AV através de feixes internodais. Ali, existe sim condução elétrica discreta, mas não percebemos isso no eletrocardiograma. Dessa forma, vemos o chamado atraso fisiológico na condução, ou seja, um intervalo isoelétrico (na linha de base), até que o estímulo ganhe o Feixe de His, já na região de despolarização não mais dos átrios, mas sim dos ventrículos. Esse feixe se ramifica e através das fibras de Purkinje, atinge o miócito ventricular difusamente. Por fim, uma vez conduzido o estímulo, as células precisam se repolarizar, para que possam conduzir nova corrente, no batimento subsequente.
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Voltando ao nosso tema, o eletrocardiograma é uma representação em um papel milimetrado dos vetores resultantes da diferença de potencial elétrico entre dois pontos do coração, ou seja, de todo esse processo de despolarização e repolarização cardíacas.
Só pra te lembrar como posicionar os eletrodos na hora de “rodar” o Eletrocardiograma normal, dá uma olhada na figura abaixo!
Sendo que:
Se necessário, na suspeita de Infarto de VD e/ou parede posterior, por exemplo:
V3R e V4R → espelho de V3 V4, mas do lado direito.
O que são derivações?
Nada mais são que “pontos de referência” para análise dos vetores. Essas referências são baseadas em uma representação gráfica que pode ser vista na figura abaixo.
Chamamos de derivações precordiais aquelas que veem o coração num plano horizontal, enquanto denominamos de derivações coronais ou frontais aquelas que veem os vetores cardíacos no plano coronal (crânio-caudal), como se desenhássemos os vetores em uma porta de vidro em frente ao paciente, entende?
Aqui é que a fisiologia te permite o “pulo do gato”. Se liga nesses 4 conceitos:
Representa a despolarização atrial, ou seja, a saída do estímulo do nó sinusal e sua chegada ao AD e AE. Lembra que falei que o AE se despolariza um pouco depois? Então, bora fosforilar um pouco em cima dessa onda P?
Em derivações que usamos como referência para avaliar o eixo cardíaco, P deve ser positiva, pois a despolarização dos átrios ocorre no sentido semelhante ao do vetor resultante da despolarização de todo o coração, muito próximo da derivação D2, em pessoas com eletrocardiograma normal, por exemplo.
Já em V1, temos um fato interessante: a parte inicial, que representa AD, tem sentido positivo, pois o estímulo corre para o mesmo lado que V1 aponta. Enquanto o AE, que é posterior em relação a AD, fica negativa, pois depois de despolarizar o AD, o estímulo se vira para posterior, ficando com vetor oposto ao sentido de V1.
É a onda P bifásica, fisiológica em V1, mas que pode ser patológica, dependendo do seu tamanho.
Lembra daquele atraso fisiológico que o nó atrioventricular (nó AV) causa? Ele é representado pelo período depois de P e antes de QRS (segmento PR), no qual o traçado assume a linha de base.
Para avaliarmos como um todo a condução do nó sinusal, passando pelos átrios até o nó AV, analisamos o intervalo PR, que, portanto, inclui a onda P (notou que intervalo é diferente de segmento PR?). Mais uma vez, correlacionando com o patológico: um bloqueio atrioventricular, que de modo simplificado representa a lentificação nesse processo representado pelo intervalo PR, causa alargamento deste para além dos 5 quadradinhos permitidos.
Aqui, como há diversas derivações, o sentido do vetor resultante da despolarização cardíaca fica tanto a favor quanto contra as direções das derivações, a depender de qual analisemos.
Assim, define-se que:
Percebeu que seguimos uma ordem alfabética? E isso não é desrespeitado! Se há, logo de início, uma onda positiva sem onda negativa a precedendo, ela já será chamada R. Se após esta houver uma onda negativa, o complexo é denominado RS (ou rS, a depender da amplitude de cada onda), de modo que depois de onda R nunca há onda Q, fechado?
Vale ressaltar que veremos uma pequena onda Q, geralmente, em D1, aVL e V4-V6, correspondente à despolarização do septo interventricular, resultando em um qRs ou qRS, por exemplo.
E se só houver uma onda negativa? Chamaremos de complexo QS (e suas variações em letra minúscula conforme a amplitude).
Após o complexo QRS, temos o ponto J, que é onde o traçado volta para a linha de base. É importante saber desse marco, porque nos infartos agudos do miocárdio, por exemplo, o referencial para identificarmos supradesnivelamento (IAM “com Supra”) do segmento ST (que descrevo adiante), ou mesmo infra de ST, é justamente esse ponto J!
Normalmente isoelétrico, ou seja, ao nível da linha de base. É a representação do momento logo depois de completada a despolarização ventricular e antes do início da repolarização dessas câmaras. No IAM com supra, como dito acima, é este segmento que está em desnível com o ponto J.
Vale a pena ressaltar que a repolarização dos átrios coincide com o QRS e, considerando que a massa ventricular despolarizada é muito maior que a atrial em repolarização, a onda que representa esse fenômeno no átrio fica imersa no QRS, não sendo vista no eletrocardiograma normal.
É importante lembrar ainda que, como a despolarização vai do endocárdio para o epicárdio e a repolarização segue sentido contrário, numa mesma derivação que aponta sempre para o mesmo lado, é usual que QRS e T tenham concordância quanto à positividade ou negatividade.
Pareceu contraditório? Vamos entender, rapidamente, esse fato? É como se na despolarização eu visse um vetor no sentido AB, porque ele vem de dentro para fora. Na repolarização, era para assumir o sentido oposto, certo? Mas, para uma mesma derivação, considerando que na repolarização o vetor se inicia de fora para dentro, ele resulta em sentido igual ao da despolarização. Simplificando, é como se ele invertesse duas vezes, fechou?
Aqui, temos um intervalo que, a princípio, é usado para avaliar a repolarização ventricular. Eu sei, eu sei, ele inclui o QRS, que é marcador de despolarização ventricular, mas, ainda sim, por incluir o intervalo JT (esse sim, o intervalo ideal para tal propósito, porém não usado na prática), o QT é considerado um parâmetro para repolarização dos ventrículos.
Por variar de acordo com a frequência cardíaca (FC), precisamos corrigi-lo, pois altas FC geram QT falsamente curtos, e o contrário também é verdade. Assim, pela clássica fórmula de Bazzet, temos: QT corrigido (QTc) = QT medido / raiz quadrada de RR, usando os dois valores ou em segundos, ou QTc = QT medido / raiz quadrada de RR/1000, com ambos os valores em milissegundos.
É importante notar que há ampla variação intra e inter-individual desses valores, de modo que essa análise nem sempre é fidedigna. Vale lembrar que a duração do intervalo QT tem relação inversa aos níveis de cálcio no sangue. Mais uma pincelada em alterações patológicas, como prometido.
Galera, há até certa divergência quanto às razões que geram essa onda. Ela é de pequena amplitude, sempre depois de T (lembram da ordem alfabética?) e costuma ser melhor visualizada em V2 a V4, especialmente em condições de FC baixas, como nas bradicardias. Em provas, está classicamente associada à hipocalemia.
“Ok, ok. Entendi isso tudo!” Mas agora preciso te dar um conselho e quero que o leve para a vida: a análise desse exame tem que ser sistematizada. Sigam-me!
Parece bobeira e todo mundo lê esse tópico com desprezo. Mas é completamente diferente analisar um eletrocardiograma normal de um paciente idoso diabético com dor torácica e o de um indivíduo saudável que quer praticar exercício físico. Você já vai com “olhos preparados” para avaliação do exame, baseado no seu raciocínio clínico, pensando em diagnósticos mais prováveis e como eles diferem do eletrocardiograma normal.
Beleza, mas temos uma armadilha nesse lance de “olhos preparados”. Por isso, chegamos no segundo conceito, também muito valioso!
Se você já vai com muita voracidade em busca de um supra de ST no paciente com dor torácica, poderá se tranquilizar com um eletrocardiograma normal que não tem supra, mas ainda assim é de um paciente que tem infarto do miocárdio, só que com infra de ST e inversão de T que você sequer lembrou de procurar, por exemplo.
Então, o que eu te digo é: crie uma forma de avaliar o eletrocardiograma para que você siga em todos os casos, até ficar medular! Não é obrigatório seguir a forma que vou descrever aqui, fechado? É só uma dentre várias sequências possíveis.
Basicamente, o eletrocardiograma normal é composto por:
Beleza, bora destrinchar cada um desses itens!
Que eixo?
Galera, trata-se do eixo de despolarização do miocárdio. Lembra que no coração normal o estímulo inicial vem do nó sinusal? Dali, atinge nó AV, desce pelo sistema His-Purkinje e atinge os ventrículos.
Assim, o eixo resultante aponta, basicamente, do lado direito para o esquerdo (origem do estímulo em AD → AE) e de cima (base) para baixo (ápice cardíaco). A soma desses dois sentidos é, em grande parte dos indivíduos saudáveis, muito próxima do sentido da derivação DII. Nesta, portanto, o QRS terá a maior positividade.
Agora vem o ponto mais difícil dessa análise, mas pense o seguinte: quanto mais concordância entre o eixo resultante cardíaco e o sentido da derivação, mais positivo é o QRS, certo?
Assim, se o eixo normal é entre –30° e + 90°, basta que dividamos as derivações em 4 quadrantes e poderemos entender que:
Primeiro, procure a onda P!
Ela é a representação da despolarização atrial, e como o nó sinusal está no próprio átrio direito, seu estímulo ali originado desce como um vetor resultante que se assemelha ao eixo cardíaco (para baixo e para a esquerda).
Assim, se o ritmo é sinusal, P será positiva, ou seja, concorda com o sentido das derivações em DI, DII e aVF, bem como em V4 a V6. Faz sentido, já que DI aponta para esquerda e aVF para baixo, com DII entre essas duas, enquanto V4 a V6 apontam para esquerda, não é verdade? Por consequência, P será negativa em aVR.
Depois, avalie se toda P é seguida de um QRS. Se sim, mais um passo no caminho do ritmo sinusal. Se não, podemos pensar em bloqueio atrioventricular, se houver Ps que não conduzem (ou seja, não são seguidas de QRS, resultando em mais Ps do que complexos QRS), ou em ritmo de escape (se mais QRS do que Ps).
Fonte: Acervo pessoal do Dr. José Roberto
Lembrou de corrigir o QT antes de me responder? Se não lembrou, volte 2 casas e relembre esse tópico!
Por fim, se você analisar o ponto J, não poderá perceber supra ou infra de ST. Caso presentes, precisamos entender a razão dessas alterações e o eletrocardiograma não será laudado como normal, fechou?
Tudo isso respeitado? Então, podemos dizer que estamos diante de um eletrocardiograma normal!
Dominado? Espero que sim, porque agora o entendimento do ECG patológico vem em ritmo exponencial!
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Aquele abraço e até a próxima.
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.