Fala, pessoal! Hoje o assunto é encefalopatia de Wernicke. Agora, vamos começar imaginando a seguinte cena: sexta-feira, véspera de natal, você está de plantão no SAMU e às 01:30 da manhã a central avisa que tem uma ocorrência para a equipe. “Como vocês podem imaginar, parece ser mais um daqueles bêbados que atormentam nossa madrugada…”.
Chegando no local você se depara com um senhor de 65 anos, branco, confuso, desorientado no tempo e no espaço, que se apresenta com nistagmo e com uma marcha de base alargada, insegura e instável, descrita como atáxica. O atendimento não apresenta demais comemorativos, exceto pela mãe do paciente, que com seus 92 anos chega furiosa na porta relatando para a equipe que “não precisava disso tudo! Falei pro filho dele que era só dar uma vitamina e botar ele pra dormir, todo dia é isso de bebida aqui em casa!”. Ela não estava de tudo errada…
O caso descrito anteriormente reflete um quadro muitas vezes subdiagnosticado na prática clínica, mas que merece sua devida atenção por ser considerado uma emergência neurológica e por sua íntima relação com o alcoolismo crônico. Nem preciso falar a respeito da dimensão e da prevalência dessa doença nos dias atuais né… Mas precisamos conversar um pouco a respeito de sua possível consequência: a encefalopatia de Wernicke (EW)!
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Voltando ao nosso tema, a encefalopatia de Wernicke é uma condição neurológica aguda, classicamente associada a indivíduos com transtornos severos do uso de álcool, que tem relação etiológica com a deficiência da tiamina, representada pela vitamina B1, uma coenzima com papel central no metabolismo cerebral. Além do uso abusivo de álcool, outros fatores de risco devem ser elucidados, por exemplo:
Imagino que nesse momento você deva estar se perguntando: “Quer dizer então que eu não posso mais beber? Todo mundo que faz uso de bebida alcoólica pode ter essa doença?”. Não é bem assim, no seu caso a preocupação maior talvez deva ser com evitar uma futura cirrose, ou mais simples que isso, evitar uma bronca dos seus pais porque você tem uma prova importante na segunda e não para de beber! A alteração na absorção intestinal da tiamina relacionada com o consumo crônico de álcool parece depender, até certo ponto, de uma predisposição genética associada, mas você não vai pagar para ver, né?
Ademais, dois eventos desencadeantes que precipitam a encefalopatia de Wernicke e que devem ser pesquisados na investigação diagnóstica são a infecção aguda e a oferta prolongada de carboidratos ou de glicose na presença de deficiência de tiamina. Daí a importância que deveríamos dar para a reposição de vitamina B1 para pacientes que recebem infusões de glicose, mas segure suas emoções porque no final iremos destrinchar o tratamento da EW.
Antes de falarmos sobre o quadro clínico, quero aproveitar para te contar que você pode saber mais sobre como lidar com a cirrose e suas complicações, de forma prática, no nosso e-book Cirrose hepática e suas complicações, que traz as principais informações que você precisa saber na hora de diagnosticar e manejar um paciente hepatopata. Clique AQUI para fazer o download gratuito!
A encefalopatia de Wernicke é caracterizada pela tríade confusão mental, oftalmoplegia com nistagmo e ataxia (fica a dica: isso cai em prova, aproveita para colar em um post-it na sua parede!). A EW deve ser clinicamente suspeitada diante da combinação desses achados em quaisquer pacientes alcoólatras ou com alguma forma de desnutrição, associados ou não com outros sinais e sintomas, como delirium, hipotensão, estigmas de infecção.
DICA DE PROVA: Como o acadêmico gosta de mnemônicos para decorar informações para a prova, aqui vai um que pode te ajudar: “O alcoólatra sempre está com sua CANECA para beber!”
CANECA
CONFUSÃO MENTAL + ATAXIA + NISTAGMO
As alterações oculares são um ponto chave na encefalopatia de Wernicke, principalmente no que tange ao nistagmo, que pode se apresentar como horizontal ou vertical. Também podemos nos deparar com:
A ataxia descrita pode ser tanto de marcha quanto postural, sendo que agudamente pode haver inviabilização da deambulação ou da postura sem um suporte, e em alguns casos nos deparamos com lentidão da marcha incerta ou com uma postura de base ampla. O exame físico pode incluir uma avaliação neurológica completa com teste cerebelar – entendeu o motivo de não poder pular o treino do exame neurológico completo nas aulas de semiologia?
Por fim, os distúrbios da consciência e do estado mental se apresentam como um estado confusional global, no qual o paciente encontra-se apático, desatento e com uma mínima expressão verbal espontânea. Vale destacar, ainda, que uma proporção menor de pacientes podem demonstrar sinais de abstinência alcoólica, com alucinações, agitação, mudanças na percepção e hiperatividade do sistema autonômico.
Sim, eu sei que você passou todos os anos da faculdade ouvindo sobre “Wernicke-Korsakoff” e achava que era uma doença única, mas na verdade é uma síndrome decorrente da soma de duas patologias distintas, que estão relacionadas entre si. Eureka!
Enquanto a EW é uma condição clínica reversível, caracterizada pelo quadro previamente descrito, a psicose de Korsakoff corresponde a uma desordem neuropsiquiátrica definitiva na qual o paciente apresenta distúrbios significativos de memória anterógrada (defeito do aprendizado) e retrógrada (perda da memória passada). Clinicamente temos um indivíduo que mantém a memória imediata, entretanto com comprometimento da memória de curto prazo, estando associado a pacientes que inventam histórias em um cenário de consciência clara.
Indivíduos com história prévia de EW (que pode até mesmo ser silenciosa) e que não alteram seus hábitos de vida, mantendo o consumo de bebida alcoólica em níveis elevados, podem evoluir com Korsakoff. Ocorre uma associação de lesões corticais, com possível perda neural, devido à neurotoxicidade provocada pelo álcool, com a patologia de regiões basais do cérebro, agravadas pela deficiência de tiamina, estabelecendo o aparecimento dessa condição irreversível.
Depois de ouvir tanta história, decorar a tríade clínica, relembrar de todo o exame neurológico, você deve estar pensando: “se eu me deparo um caso desses na emergência, mando na hora pra neurocirurgia!”. Acalme-se, pequeno gafanhoto. Qual é a causa base da doença? Deficiência de tiamina. Voilà, o tratamento envolve nada mais nada menos que reposição de tiamina parenteral.
Então para consolidar: você atendeu o senhor de 65 anos, identificou a marcha atáxica associada à oftalmoplegia e ao rebaixamento de consciência, definiu sua hipótese diagnóstica de EW, e agora vai adotar uma conduta. É um cenário de emergência, então antes de mais nada lembre-se de estabilizar a esse paciente (monitorar, pegar acesso, oxigênio se necessário…), para então administrar 500 mg de tiamina EV (diluídos em 100mL SF 0.9%) 3 vezes ao dia por 3 dias ou até melhora do quadro. Caso haja demora no início do tratamento, ou até mesmo ausência deste, há um risco de evolução para psicose de Korsakoff. Então não pode dar bobeira!
Para fechar, devemos nos atentar a alguns pontos. Pacientes com hipomagnesemia também devem ser tratados, com reposição endovenosa, pois isso pode resultar em uma recuperação inadequada da encefalopatia de Wernicke, especialmente em pacientes com alcoolismo.
Por fim, lembra da relação dessa doença com quadros de desnutrição? Pois bem, uma análise dietética deve ser feita para avaliar as necessidades calóricas e determinar como fornecer os alimentos, bem como a tiamina para esse paciente.
Viram a importância desse tema que às vezes passa batido na nossa formação médica? Durante toda a nossa graduação só ouvimos que “a prevalência de alcoolismo tem aumentado cada vez mais”, mas não nos aprofundamos nas consequências que essa condição pode resultar.
Resumindo: Wernicke corresponde a uma emergência neurológica, composta pela tríade – rebaixamento do nível de consciência, oftalmoplegia com nistagmo e ataxia – que afeta principalmente indivíduos alcoólatras crônicos, e que deve ser abordada rapidamente através da infusão de tiamina endovenosa. Se não tratada, pode evoluir com um distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado por amnésia anterógrada e retrógrada, irreversível, denominada psicose de Korsakoff.
Então, meus queridos e minhas queridas, da próxima vez que sua avó te oferecer uma boa vitamina com aveia para curar aquela ressaca do dia seguinte, pensaria duas vezes antes de recusar… Fora isso, beba com moderação!
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*Colaborou: Angelo Tabet Zanini
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.