A leishmaniose visceral integra uma das endemias prioritárias no mundo. Na América Latina, a doença já foi descrita em pelo menos 12 países, sendo que 90% dos casos ocorrem no Brasil, especialmente na região Nordeste.
Neste artigo, explicaremos o que é leishmaniose visceral, por conta da incidência e da alta letalidade, principalmente em indivíduos não tratados, crianças desnutridas e portadores de doenças imunossupressoras. Esses fatores fazem com que ela seja uma das doenças mais importantes da atualidade.
As leishmanioses são um conjunto de doenças parasitárias não contagiosas endêmicas das regiões tropicais e subtropicais. No Brasil, são agravos de notificação compulsória e atingem todas as regiões do país, sendo mais frequentes nos locais de clima quente e úmido.
Inicialmente, tinham distribuição predominante na área rural. Mais recentemente, estão se expandindo para as áreas urbanas de médio e grande porte. Na zona urbana, os hospedeiros são os animais domésticos, principalmente os cachorros. Nas áreas rurais, o agente propagador da doença se aloja nos animais silvestres.
Existem 20 tipos diferentes de protozoários da família Trypanosomatidae. Todos são transmitidos por insetos hematófagos (que se alimentam de sangue), mais especificamente pela fêmea do mosquito-palha.
A doença clínica manifesta-se em duas grandes síndromes. A primeira é a leishmaniose tegumentar, que causa lesões na pele e, em casos mais graves, ataca as mucosas do nariz e da boca.
A segunda é a leishmaniose visceral, que como o próprio nome indica, afeta as vísceras, sobretudo fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea. Ela pode levar à morte quando não tratada.
No Brasil, o Leishmania (L.) chagasi é o agente patológico mais comum do calazar. A doença afeta mais frequentemente crianças menores de 10 anos (54,4%), sendo que 41% dos casos registrados ocorrem em menores de 5 anos.
A razão da maior susceptibilidade das crianças é explicada pelo estado de relativa imaturidade imunológica celular agravado pela desnutrição, que é comum nas áreas endêmicas.
Esse agravo à saúde também é considerado emergente em indivíduos portadores da infecção pelo vírus da imunodeficiência adquirida (HIV). O envolvimento de adultos sadios tem repercussão significativa na epidemiologia da leishmaniose visceral, já que, muitas vezes, se relaciona a quadros assintomáticos ou oligossintomáticos.
Após a picada do mosquito, o período de incubação varia de 10 dias a 24 meses, com média entre 2 a 6 meses. Só uma pequena parcela de indivíduos infectados desenvolve sinais e sintomas da leishmaniose.
Quando sintomática, a leishmaniose visceral pode gerar quadros iniciais relativamente brandos e comuns a outras doenças infecciosas. Para fins didáticos, a evolução clínica é dividida em três períodos.
Também chamada de fase aguda, na maior parte dos casos, gera febre com duração inferior a quatro semanas, palidez cutâneo-mucosa e hepatoesplenomegalia. O estado geral do paciente mantém-se preservado. Geralmente, o baço não ultrapassa 5 cm do rebordo costal esquerdo.
O hemograma pode evidenciar anemia leve a moderada, com hemoglobina acima de 9 g/dl, contagem de leucócitos sem alterações significativas, com predominância de células linfomonocitárias, e contagem normal de plaquetas. Em geral, a velocidade de hemossedimentação é elevada (> 50 mm). As proteínas totais e frações podem estar levemente alteradas.
Caracteriza-se por febre irregular, geralmente associada a emagrecimento progressivo, palidez cutâneo-mucosa e agravamento da hepatoesplenomegalia. Costuma manifestar-se como um quadro clínico arrastado, de mais de dois meses de evolução, associado a comprometimento do estado geral.
Os exames complementares podem indicar anemia, trombocitopenia, leucopenia com predominância acentuada de células linfomonocitárias e inversão da relação albumina/globulina.
Também pode haver elevação dos níveis das aminotransferases (de duas a três vezes os valores normais), das bilirrubinas, da ureia e da creatinina.
Caso o diagnóstico e o tratamento não sejam feitos, a doença evolui progressivamente para o período final, com febre contínua e comprometimento mais intenso do estado geral. Pode haver desnutrição (cabelos quebradiços, cílios alongados e pele seca) e edema dos membros inferiores, que podem evoluir para anasarca.
As complicações mais frequentes são de natureza infecciosa bacteriana e hemorrágica. Entre elas, destacam-se: otite média aguda, piodermites e infecções dos tratos urinário e respiratório.
As hemorragias são secundárias à plaquetopenia, sendo a epistaxe e a gengivorragia as mais encontradas. O óbito dos pacientes costuma ser determinado por quadros sépticos e sangramentos.
Como a doença tem notificação compulsória e evolução potencialmente grave, o diagnóstico da leishmaniose visceral deve ser feito de forma precisa e o mais rápido possível.
O diagnóstico clínico deve ser suspeito quando o paciente apresentar febre e esplenomegalia associadas ou não à hepatomegalia. Ao se deparar com um caso assim, pergunte sobre história de residência ou viagem para áreas endêmicas e histórico de imunossupressão.
A soma da história e dos sinais clínicos associados à presença de alterações sugestivas nos exames laboratoriais aumentam a suspeita diagnóstica. É importante lembrar que, para confirmar a suspeita, não existe um teste diagnóstico totalmente específico e sensível.
O diagnóstico parasitológico é o único método de certeza com base na demonstração do parasita obtido de material biológico de punções hepáticas e esplênicas, linfonodos, medula óssea ou pele. Entretanto, é invasivo e pode gerar falsos negativos se o grau de parasitemia do hospedeiro for baixo.
Quando a infecção é assintomática ou sintomática no período inicial, o método de escolha é o teste sorológico, como a imunofluorescência indireta e os ensaios imunoenzimáticos. Além disso, durante o período de estado, os títulos de anticorpos específicos anti-leishmania são elevados.
Ao contrário do que ocorre na leishmaniose tegumentar, a intradermorreação de Montenegro, ou o teste de leishmania, é sempre negativa durante o período de estado, não sendo utilizada para o diagnóstico. Ela se torna positiva depois da cura clínica da maioria dos pacientes, em um período de seis meses a três anos após o término do tratamento.
No tratamento para leishmaniose visceral, os indivíduos assintomáticos não devem ser notificados, nem tratados. Antes de iniciar o tratamento dos pacientes sintomáticos, a avaliação e a estabilização das condições clínicas pré-existentes, além do tratamento das infecções concomitantes, são importantes.
Em situações em que existam condições de seguimento, o tratamento pode e deve ser feito ao nível ambulatorial. Já os casos mais graves ou com maior risco de desfecho desfavorável devem receber tratamento hospitalar.
O tratamento sistêmico é mandatório. No Brasil, as drogas de primeira escolha são os compostos antimoniais pentavalentes por via IM durante 20 ou 40 dias, de acordo com a gravidade da infecção e a resposta ao tratamento. Os tratamentos alternativos são anfotericina B e pentamidinas.
Todas essas drogas têm toxicidade considerável, por isso, leve em conta as comorbidades e o perfil de cada paciente para decidir qual é o tratamento adequado. Lembre-se de que todas as reações adversas devem ser notificadas às autoridades sanitárias.
É recomendável o repouso físico relativo, bem como a abstinência de bebidas alcoólicas durante o período de tratamento. Isso porque pode haver um possível comprometimento hepático relacionado ao uso das medicações. Em todos os pacientes, faça avaliação clínica antes e durante o tratamento com:
Os critérios de cura são essencialmente clínicos. O desaparecimento da febre é precoce e acontece por volta do quinto dia de medicação. A redução da hepatoesplenomegalia e a melhora dos parâmetros hematológicos (hemoglobina e leucócitos) ocorrem logo nas primeiras semanas.
Já as alterações vistas na eletroforese de proteínas se normalizam lentamente, processo que pode levar meses. O ganho ponderal do paciente é visível, com retorno do apetite e melhora do estado geral.
O seguimento do paciente tratado deve ser feito aos 3, 6 e 12 meses após a conclusão do tratamento. Na última avaliação, se permanecer estável, é considerado curado.
Para fins de encerramento do caso no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), não é necessário aguardar o término do acompanhamento. As provas sorológicas são de pouca utilidade no seguimento do paciente porque se negativam tardiamente.
Não há vacina contra os tipos de leishmaniose em humanos. As medidas mais utilizadas para o combate da enfermidade baseiam-se no controle de vetores e reservatórios, proteção individual, diagnóstico precoce e tratamento dos doentes, manejo ambiental e educação em saúde.
Existem vacinas contra a leishmaniose visceral canina licenciadas no Brasil e na Europa. O cão doméstico é considerado o reservatório epidemiologicamente mais importante para a leishmaniose visceral americana, mas o Ministério da Saúde do Brasil não adota a vacinação canina como medida de controle da leishmaniose visceral humana.
Devido ao tamanho muito reduzido, o encontro de larvas e pupas de flebotomíneos na natureza é uma tarefa extremamente difícil. Por essa razão, não há nenhuma medida de controle de vetores que contemple as fases imaturas. As medidas de proteção preconizadas consistem basicamente em:
Como pôde observar, conhecer sobre a manifestação da leishmaniose visceral é essencial para um diagnóstico eficaz. Quer saber mais sobre outras condições e práticas de emergência? Então, conheça a Academia Medway e aproveite os conteúdos gratuitos.
Paulista, nascida em Limeira em 1987, médica graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas em 2014 e especializada em Medicina de Família e Comunidade pela RMFC-Rio. Interessada por tudo que permeia os processos de raciocínio e comunicação clínica. Busca novas formas de pensar o ensino e a prática médica.