Com a pandemia de COVID-19, o conhecimento sobre as pandemias do passado tomou o interesse do grande público, assim como o medo de outras no futuro. É impossível falar do assunto sem reconhecer a importância e o conhecimento acumulado sobre as pandemias de gripe por vírus influenza. Vamos aprender um pouco mais sobre elas.
Gripe é o nome que damos à doença causada pelo vírus influenza. Embora outros vírus possam causar quadros semelhantes e indistintos, quando não sabemos a etiologia, nós os chamamos de síndromes gripais.
Em outras palavras, ainda que não saibamos que o vírus é de fato o influenza, enquadramos os quadros como síndrome gripal. Os sintomas surgem após um período de incubação de 7 dias, com febre, rubor facial, prostração e mialgias. Após 2 a 4 dias, podem surgir sintomas respiratórios, como tosse e coriza.
Etimologicamente, pandemia significa “algo que aflige a todos”, mas não há uma definição técnica consensual acerca do termo. Em geral, o ritmo da transmissão e o alcance internacional é o que leva a Organização Mundial da Saúde (OMS) a definir um fenômeno de saúde pública como pandêmico.
Na maioria das vezes, são epidemias transnacionais causadas por agentes infecciosos. Entretanto, nem sempre esses agentes causam gripe. Outras doenças que causaram pandemias na história recente incluem a tuberculose, cólera e HIV/AIDS. Contudo, aqui falaremos especificamente de gripe por vírus influenza.
Fica a dica: epidemia é qualquer doença cuja incidência (número de casos novos por período de tempo) se situe acima do limite superior de uma incidência normal (que foi previamente convencionada para aquela população). Essa incidência normal é estimada com base em mais ou menos 1.96 desvios-padrão em relação à média. Mas isso é assunto para outro artigo.
Hoje, a definição de pandemia é mais abrangente, mas por muitos anos, as gripes por vírus influenza serviram de protótipo para o estudo de outras pandemias pela OMS. A gripe espanhola de 1918 é muitas vezes a referência na elaboração de critérios e classificações usadas em outras situações devastadoras de saúde pública. Nessa perspectiva, ocorreriam em quatro estágios:
As pandemias também costumam ser estudadas levando em conta:
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) americano adotam modelos análogos para estudar as fases evolutivas de uma pandemia.
Tabela 1 – Fase pandêmica da OMS e principais ações por estágio
PROBABILIDADE ESTIMADA DE PANDEMIA | DESCRIÇÃO | PRINCIPAIS AÇÕES NOS PAÍSES AFETADOS | PRINCIPAIS AÇÕES EM PAÍSES AINDA NÃO AFETADOS | |
FASE 1 | Incerta | Nenhum vírus da gripe animal circulando entre animais foi relatado, causando infecção em humanos. | Produzir, implementar, exercitar e harmonizar planos nacionais de preparação e resposta à pandemia com planos nacionais de preparação e resposta a emergências. | |
FASE 2 | Um vírus de gripe animal que circula em animais domesticados ou selvagens é detectado por ter causado infecção em humanos e, portanto, é considerado uma ameaça potencial específica de pandemia. | |||
FASE 3 | Um vírus de influenza animal ou humano causou casos esporádicos ou pequenos agrupamentos de doenças em pessoas, mas não resultou em transmissão humano-humano suficiente para manter surtos comunitários. | |||
FASE 4 | Médio a alto | A transmissão humana-humana de um vírus animal ou humano-animal capaz de sustentar surtos comunitários foi confirmada. | Contenção rápida. | Prontidão para resposta à pandemia. |
FASE 5 | Alto para certo | O mesmo vírus identificado causou surtos sustentados em nível comunitário em pelo menos dois países em uma mesma região da OMS. | Resposta pandêmica: cada país implementa ações como solicitado em seus planos nacionais. | Prontidão para uma resposta iminente. |
FASE 6 | Pandemia em andamento | Além dos critérios definidos na Fase 5, o mesmo vírus tem causado surtos sustentados de nível comunitário em pelo menos um outro país, em outra região da OMS. | ||
PERÍODO PÓS-PICO | Os níveis de influenza pandêmica na maioria dos países com vigilância adequada caíram abaixo dos níveis de pico. | Avaliação da resposta; recuperação; preparação para possível segunda onda. | – | |
POSSÍVEL NOVA ONDA | O nível de atividade de influenza pandêmica na maioria dos países com vigilância adequada está aumentando novamente. | Resposta | ||
PERÍODO PÓS-PANDEMIA | Os níveis de influenza voltaram aos níveis observados para a gripe sazonal na maioria dos países com vigilância adequada. | Avaliação da resposta; revisão de planos; recuperação. |
Fonte: World Health Organization, 2009.
Confiar apenas no número de mortes para atribuir a gravidade de uma pandemia não é suficiente. O CDC, por exemplo, adota um modelo chamado Pandemic Severity Assessment Framework (PSAF), que combina indicadores em duas dimensões:
Assim, pode-se estabelecer comparações e tendências. Veja abaixo uma tabela comparativa das últimas grandes pandemias.
Tabela 2 – Classificação do CDC para gravidade da pandemia
Pandemias | Transmissibilidade | Severidade Clínica |
Gripe espanhola | 5 | 7 |
Influenza (1957-1958) | 4 | 4 |
Influenza (1968) | 4 | 3 |
Febre suína (2009) | 3 | 2 |
COVID-19 (2019-2021) | 5 | 4~7 |
Fonte: Reed et al., 2013.
Possivelmente, as primeiras epidemias de influenza aconteceram há mais de 8 mil anos, na China, e há registros sugestivos de sua ocorrência na Grécia, há cerca de 2500 anos. Há registros de Hipócrates falando sobre quadros gripais há 2400 anos, mas surtos envolvendo múltiplos continentes só começaram a ser comentados a partir do século XV, com as grandes navegações.
Em 1493, por exemplo, surtos na Europa coincidiram com a aniquilação de populações indígenas recém-descobertas na América. Em 1580, na Rússia, iniciou um surto de gripe que logo tomou toda a Europa e norte da África. Entre 1600 e 1900, várias outras supostas pandemias tomaram o continente.
Desde o século XIX, passaram a ocorrer surtos de dimensões internacionais a cada 10 a 50 anos, sendo os mais recentes:
Entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, uma cepa do vírus influenza H1N1 causou a pandemia mais grave até hoje. Apesar da dificuldade de se estimar com precisão, historiadores acreditam que essa doença:
A gripe espanhola atingiu povos tão distantes quanto comunidades no Ártico e no Pacífico. Acredita-se que desembarcou no Brasil vinda no navio europeu Demerara, encontrando um país completamente despreparado para lidar com qualquer evento maior de saúde pública. Cerca de 35 mil pessoas morreram – número possivelmente subestimado –, incluindo o então presidente Rodrigues Alves.
Algumas características dessa variante podem explicar esses números, principalmente sua taxa de infecção em quase 50%, a gravidade dos sintomas e uma mortalidade que podia chegar a 20%. Diferentemente das pandemias seguintes, destacou-se pela ocorrência de leucopenia e hemorragias mucocutâneas (nariz, estômago, intestino, ouvido e pele). Achados de autópsias também revelavam hemorragias pulmonares, pericardites, miocardites, hepatites e esplenomegalia. Outra peculiaridade foi sua preferência por adultos jovens, com idade entre 20 e 40 anos.
Numa era pré-antibióticos, com frequência as mortes ocorriam por pneumonias bacterianas secundárias. Nas pandemias seguintes, em que já estavam disponíveis antibióticos, a capacidade de controlar infecções secundárias pode ter reduzido a mortalidade, em comparação com as anteriores.
O vírus influenza A do tipo H2N2 se originou na China e rapidamente se espalhou pelo mundo, matando mais de 500 mil pessoas. Acredita-se que a cepa veio de uma recombinação do vírus humano com uma forma de vírus aviário, para o qual não havia imunidade na população. Através dos jornais da época, foi possível traçar a rota do vírus, iniciando em Guizhou, passando para Yunnan, Hong Kong, Cingapura, Taiwan, Japão, Reino Unido e finalmente os Estados Unidos.
Ao contrário da gripe espanhola, e similarmente aos quadros gripais convencionais, o vírus mostrou preferência por crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas. Após os surtos iniciais, o vírus continuou sendo transmitido de forma controlada graças ao desenvolvimento de uma vacina. Em 1968, sofreu mutações que levaram à pandemia seguinte, da gripe de Hong Kong.
A terceira pandemia do século XX foi causada por uma mutação do influenza A H3N2 e ganhou a alcunha de “gripe de Hong Kong”. Entre 1968 e 1970, de 1 a 4 milhões de pessoas morreram, correspondente a 0,1% da população mundial. Sua disseminação tomou o mesmo caminho da gripe asiática, do sudeste asiático ao oriente médio, passando pela Europa e finalmente dos EUA para o restante das Américas. O sistema de vigilância epidemiológica da OMS, já mais experiente, registrou duas ondas de disseminação com picos bem definidos.
Uma cepa de H1N1 iniciou um surto na União Soviética em 1977, que se espalhou pela China para o resto do mundo e durou quase 3 anos. Apesar da alta infectividade, sua mortalidade relativamente baixa causou cerca de 700.000 vítimas.
A análise genética da cepa mostrou características similares às do vírus de 1957, o que, num contexto de guerra fria, alimentou teorias de que seria fruto de um vazamento em laboratório ou arma biológica. Logo, essas especulações foram desmentidas pela OMS.
A primeira pandemia de influenza A do século XXI matou cerca de 300 mil pessoas em 187 países, incluindo o Brasil. A gripe suína foi causada pelo H1N1 mutado a partir de variantes suínas e aviárias, cujos primeiros casos foram identificados no México e rapidamente se espalhou para a Europa, Oceania e o restante do mundo.
Cerca de um quinto da população mundial foi infectada ao longo dos 20 meses de pandemia, mas a mortalidade foi baixíssima em comparação às outras pandemias. O Brasil foi exceção, chegando a representar 2% das mortes mundiais.
O papel da vigilância epidemiológica, das medidas restritivas de contato e das vacinas continua sendo crucial na prevenção e controle desses fenômenos.
Contudo, ficou claro que, a menos que medidas eficazes sejam implementadas, ter dados dissociados de políticas neles baseados não vai impedir que novas pandemias como a de 1918 ocorram.
Estudos sobre a resposta imune do hospedeiro serão úteis para orientar estratégias terapêuticas no enfrentamento de pandemias de influenza no futuro.
Ficou com alguma dúvida acerca das pandemias de gripe por influenza? Deixe um comentário aqui embaixo! Será um prazer respondê-lo!
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HOLLOWAY, Rachel et al. Updated Preparedness and Response Framework for Influenza Pandemics. Morbidity and Mortality Weekly Report, v. 63, n. 6, 26 set. 2014. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/pdf/rr/rr6306.pdf>. Acesso em: 20 out. 2021.
PALESE, P. et al. Influenza: old and new threats. Proc Natl Acad Sci U S A, v. 106, n. 28, p. 11709-12, 14 jul. 2009. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19597152. Acesso em: 20 out. 2021.
REED, Carrie et al. Novel framework for assessing epidemiologic effects of influenza epidemics and pandemics. Emerg Infect Dis, v. 19, n. 1, p. 85-91, jan. 2013. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23260039. Acesso em: 20 out. 2021.WORLD HEALTH ORGANIZATION. Pandemic Influenza Preparedness and Response: A WHO Guidance Document. Geneva: World Health Organization. 2009. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK143061. Acesso em: 20 out. 2021.
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.