Reposição volêmica em adultos com diarreia aguda: saiba mais!

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Fala, pessoal, todos bem? Espero que sim, porque o texto de hoje fala sobre um tema muito comum no cotidiano de quem dá plantão em pronto atendimento: reposição volêmica em adultos com diarreia aguda. 

Por aprender de “orelhada” ou, nem isso, podemos conduzir casos assim de uma forma longe da ideal, subestimando as perdas volêmicas. Isso pode gerar riscos desnecessários ao paciente, especialmente no que diz respeito à desidratação grave! E aí, vamos juntos?

Saiba mais sobre a reposição volêmica em adultos com diarreia aguda!
Saiba mais sobre a reposição volêmica em adultos com diarreia aguda!

O que é diarreia aguda? 

Basicamente, dizemos que alguém tem diarreia quando há evacuações com fezes amolecidas em 3 episódios ou mais, ao longo de 24h. 

Para chamarmos de aguda, a diarreia deve durar, no máximo, 14 dias. De 15 a 30 dias, chamamos a diarreia de persistente e, se durar mais de 30 dias, classificaremos como diarreia crônica.

Em diarreias agudas, a primeira e absoluta hipótese é a de que ela se trate de etiologia infecciosa. Esse raciocínio é válido tanto para países considerados desenvolvidos, quanto para aqueles “em desenvolvimento”. A grande mudança é o perfil de patógenos causadores de tal queixa nesses dois cenários.

Em outras palavras, definir a diarreia como aguda nos dá “boa margem de segurança” no sentido de que o quadro deve ser autolimitado (um gastroenterite infecciosa aguda) e a nossa grande preocupação passa a ser com o grau de hidratação, com a prevenção e com a correção da desidratação do paciente. 

Aqui, cabe um comentário breve: é claro que toda diarreia persistente ou crônica começou, um dia, como diarreia aguda, concorda? 

Mas se a queixa é, prioritariamente, diarreia com menos de 14 dias de evolução, fica muito difícil pensar “logo de cara” em etiologias típicas de diarreia crônica no início de sua manifestação, como doença inflamatória intestinal, intolerância à lactose, doença celíaca, entre outras. 

Nesses casos, o médico precisará da evolução da doença ou de características mais específicas (ex: piora relacionada à ingestão de derivados de leite) para que o diagnóstico etiológico apareça no horizonte de suspeição clínica. 

Mas, bom-senso nunca é demais: se o paciente traz como queixa uma diarreia considerada aguda no dia da consulta, porém com quadros repetitivos neste padrão, nos últimos meses, ainda que com resolução espontânea, devemos esmiuçar essa queixa. 

Além disso, devemos pensar em etiologias de diarreia persistente ou crônica (disabsortivas, inflamatórias), ou em doenças de base que cursem com tal manifestação clínica (ex: infecções oportunistas em imunossuprimidos).

Podemos diferenciar o agente etiológico pelas manifestações clínicas?

Pessoal, sem muita presunção aqui. A resposta, basicamente, é: não dá. Entretanto, ao dividirmos a diarreia aguda entre aquosa e disentérica (sanguinolenta), podemos, sim, nos direcionar para um grupo de patógenos. E isso tem relevância clínica, inclusive no tratamento. Vem comigo:

Diarreia aguda aquosa: fora de situações epidêmicas, num padrão de ocorrência dentro do limite endêmico para determinada região, as diarreias marcadamente aquosas, sem os chamados produtos patológicos (sangue e pûs), são, geralmente, causadas por:

  • E. coli enterotoxigênica – o agente mais comum (causador da “diarreia do viajante”, definida pela diarreia aguda de pacientes que vivem em áreas não endêmicas para esse patógeno, como a Europa Ocidental, quando viajam à áreas endêmicas);
  • Norovírus (esse patógeno tem por característica causar vômitos de forma quase concomitante ao início do quadro diarreico);
  • Campylobacter, mais comumente as espécies “não-jejuni”;
  • Salmonella não typhi;
  • Vibrio cholerae;
  • Aeromonas.

Cabe ainda ressaltar que diarreia aquosa pode ser um sintoma, dentro de um quadro clínico com vários outros durante infecções que não são propriamente intestinais, sejam virais ou não, bastante comuns no dia-a-dia do brasileiro,  como as por influenza, malária, dengue, leptospirose, dentre outras.

Diarreia aguda sanguinolenta: de novo, fora de situações de epidemia, as causas mais comuns desse tipo de diarreia são:

  • Shigella flexneri
  • Shigella dysenteriae
  • Campylobacter jejuni
  • Entamoeba hystolitica
  • Salmonella typhi

E por que o reforço de que esse perfil se refere a situações fora de situações de epidemia?

Basicamente, porque durante epidemias ou surtos de diarreia (acima do limiar epidêmico), as duas principais etiologias são:

  • Vibrio cholerae: a famosa e temida cólera causa diarreia aquosa com aspecto semelhante à água de arroz,  por vezes mucoide, em grandes volumes, geralmente acompanhado de dor abdominal em cólica, mas sem peritonite, além de vômitos se iniciando praticamente junto à diarreia. Esse patógeno é responsável por grande perda eletrolítica, o que demanda bastante rigor no momento do tratamento e na reposição hidroeletrolítica! 
  • Sorotipo 1 da Shigella dysenteriae : causa diarreia aguda sanguinolenta, geralmente em pequena quantidade por evacuação, mas em múltiplos episódios, acompanhados de tenesmo e, por vezes, febre.

Tratamento: reposição volêmica em adultos com diarreia aguda

Galera, vamos, agora, construir um raciocínio como se tivéssemos dentro do consultório com um paciente com diarreia aguda.

Para isso, quero que respondamos a 2 perguntas básicas: há algo na história clínica que me faça suspeitar de uma doença de base que se manifesta com diarreia? Ou seja, além da diarreia, nos últimos dias ou meses, há perda de peso, anemia, lesões cutâneas, icterícia ou disfagia? 

Nesses casos, não devemos estar diante de uma pura e simples gastroenterite infecciosa aguda e, então, o raciocínio se volta a outras hipóteses: pode ser malária, dengue, leptospirose? Podemos estar diante dos primeiros episódios diarreicos de alguém com doença celíaca,  insuficiência pancreática, doença de vias biliares, HIV, neoplasia do TGI? 

Tendo respondido “não” para a primeira pergunta, entramos, portanto, num cenário onde há “diarreia aguda e mais nada” (exceto, claro, sintomas que frequentemente estão presentes em gastroenterites agudas, como vômitos, mialgia, astenia, febre). 

O quadro clínico desse paciente deve ser conduzido, portanto, como uma infecção aguda do trato gastrointestinal, que é, na maioria dos casos, autolimitada, beleza?

Assim, a segunda pergunta já vem no sentido de direcionamento terapêutico: existe algum sinal de desidratação

Para responder a essa pergunta, precisamos conversar sobre o que utilizaremos como parâmetro para definição de desidratação. Nesse ponto, o Ministério da Saúde já vincula o grau de perda volêmica a um dos três Planos de Manejo: A, B ou C.

Dessa forma, temos:

Sem desidratação (1 ou nenhum dos critérios de desidratação).Desidratação leve (2 ou mais dos critérios abaixo)Desidratação grave (2 ou mais dos critérios abaixo)
Bom Estado Geral, AlertaOlhos bem hidratadosLágrimas presentes (mais útil para crianças)Sem sede
Sinal da prega ausentePulsos amplos não taquicárdicos
Irritado ou ansioso.
Olhos “fundos” e secosLágrimas ausentes

Ávido por líquidos
Sinal da prega + <2s.Pulsos rápidos e fracos
Sonolência/torpor
Olhos muito fundos e secosLágrimas ausentes

Incapaz de ingerir líquidosSinal da Prega + >2s.Pulso fino quase imperceptível
PLANO APLANO BPLANO C
AMBULATORIAL
1) Ingerir mais líquido que o habitual:Líquidos caseiros Soro de Reidratação Oral (SRO)* Não usar refrigerante ou sucos adoçados
2) Manter alimentação usual, prevenindo desnutrição 






3) Orientar sinais de alarme:Ausência de melhora.Vômitos repetidosSede intensaIncapacidade de comer ou beber líquidos.Queda de estado geral.Redução de diurese.Sangue nas fezes.
EM UNIDADE DE SAÚDE
1) Reposição via oral com Soro de reidratação Oral:50-100ml/Kg em 4-6 horas


2) Reavalie o estado de hidrataçãoMelhora completa: aplique plano A.Persiste desidratado: considere sonda nasogástrica Piora da desidratação:aplique  plano C







UNIDADE HOSPITALAR
1) Reposição endovenosacom Ringer lactato ou SF 0,9%:1.1 Fase de Expansão (3h):30mL/Kg em 30 min.70mL/Kg em 2:30h
1.2 Fase de manutenção 24h:Soro glicosado 5% + SF 0,9% (4:1) = 1500 + 20 mL/KgKCl 10 % 1 mL para cada 100mL da fase de manutenção 
1.3 Fase de reposição 24h):Soro glicosado 5% + SF 0,9% (1:1): começar com 50 mL/Kg/dia
ORIENTAÇÕES E SEGUIMENTO







Reavaliar em 2 dias, ou antes, se sinais de alarme presentes


* Casos de diarreia aguda aquosa, não complicada não demandam avaliação laboratorial de rotina.
ORIENTAÇÕES E SEGUIMENTO







O paciente deverá permanecer em unidade até reidratação completa!

Casos de diarreia aguda aquosa, não complicada não demandam avaliação laboratorial de rotina.
ORIENTAÇÕES E SEGUIMENTO
Fase de manutenção e de reposição devem ser feitas simultaneamente, ao longo de 24 horas.
SRO deve ser ofertado assim que o paciente for capaz de ingerir líquidos, em torno de 3  horas após início da expansão endovenosa.
Só pare a fase de hidratação EV após melhora nítida do estado de hidratação e da capacidade de ingestão VO.
Passe para planos A ou B conforme melhora de critérios de hidratação

Adaptado de Ministério da Saúde [S.d.] [1] https://bvsms.saude.gov.br/bvs/cartazes/manejo_paciente_diarreia_cartaz.pdf

Vale lembrar que sinais de desidratação não citados na tabela também podem e devem ser considerados, como taquicardia, extremidades frias/pegajosas, mucosa oral seca, retração de diurese. Devemos nos lembrar de usar critérios e tabelas como guias, mas sem perder de vista outros parâmetros na análise de nossos pacientes, beleza? 

Divergências na literatura

Segundo a literatura internacional:

  1. O plano B poderia ser feito co soro de Reidratação Oral 75 mL/Kg em 4 horas, com reavaliação do estado de hidratação e conduta subsequente de acordo com o grau de desidratação.
  2. O plano C pode ser feito com fase de expansão: 30 mL/Kg em 30 minutos (Ringer lactato ou SF 0,9%) e manutenção, que consiste em 200mL/Kg em 24h, sendo que os primeiros 100 mL/Kg são ofertados nas primeiras 4 horas.[2]

Por fim, uma pergunta que sempre aparece e nos pega desprevenidos:

Devemos prescrever antibióticos diante de pacientes com diarreia aguda?  

Nas aquosas, exceto se suspeitamos de cólera, não estão indicados antibióticos! 

Nos adultos, se estivermos diante de diarreia de padrão disentérico, especialmente com sangue e conteúdo purulento nas fezes, geralmente associada à febre e queda do estado geral, a indicação é que prescrevemos sim, antibioticoterapia. A escolha recai sobre aquelas drogas com ação sobre a Shigella flexneri, a grande causadora de disenteria aguda no nosso meio:

  • “Cipro” VO 500mg de 12 em 12 horas por 3 dias;
  • Azitromicina 500mg 1 vez ao dia também por 3 dias. 

imagem: https://www.eadplus.com.br/blog/as-10-perguntas-mais-frequentes-sobre-prescricao-farmaceutica/

Sulfametoxazol-trimetoprim já foi bastante usado nesse contexto, mas o aumento da resistência antimicrobiana desestimula a prescrição da droga. 

Caso não haja melhora em 48h, nos pacientes sem queda do estado geral e com condições de hidratação VO, pode-se tentar trocar o antibiótico com ação “anti-shigella” via oral. Entretanto, nesse cenário, o mais comum e recomendado pelo Ministério da Saúde é iniciarmos Ceftriaxona 2g/dia IM, por 2-5 dias e, na presença de de queda relevante de estado geral, internação hospitalar para hidratação endovenosa. 

Em persistindo ausência de melhora em 2 dias, deve-se adicionar cobertura contra Entamoeba hystolitica, com metronidazol VO 500mg por 7 – 10 dias, seguido de droga “anti-entamoeba” de ação intraluminal, fechado?

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ReferÊncias utilizadas para elaborar o texto sobre reposição volêmica em adultos com diarreia aguda

  1. Ministério da Saúde (Brasil). Manejo do paciente com diarreia. Brasília, DF, [S.d., citado em 26 de Fevereiro de 2022]. 1 pdf. 1 f. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/cartazes/manejo_paciente_diarreia_cartaz.pdf
  2. LaRocque. R. et al. Approach to the adult with acute diarrhea in resource-limited countries. UpToDate. Última edição em 24 de Novembro de 2020 , citado em 26 de Fevereiro de 2022.

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LucasFaria

Lucas Faria

Mineiro de Uberlândia, nascido em 1995, formado pela Universidade Federal de Uberlândia. Residência em Clínica Médica no Hospital de Clínicas da USP de Ribeirão Preto.