Ivermectina contra a COVID-19: há eficácia?

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Saiba se a ivermectina tem eficácia contra Covid-19
Saiba se a ivermectina tem eficácia contra Covid-19

Um assunto que foi (e ainda é) muito discutido durante toda a pandemia da COVID-19 é o uso de medicamentos para tratamento/prevenção dessa doença. Podemos citar, como exemplo, o uso da ivermectina. 

Mesmo estudos com metodologia adequada mostrando ausência de eficácia dessa medicação, muitos ainda acreditam que ela tem algum papel na COVID-19. Hoje iremos falar sobre o uso da ivermectina no contexto do coronavírus, os motivos que levaram ao uso e suas consequências. E, também, explicar os motivos de não utilizá-la nessa doença.

O que é e como age a ivermectina?

A ivermectina é um antiparasitário, indicado, segundo sua bula, para casos de: 

  • estrongiloidíase;
  • filariose;
  • ascaridíase;
  • escabiose;
  • pediculose (piolho). 

Ela age imobilizando esses vermes, ao ativar canais presentes apenas em nervos e células musculares de invertebrados, resultando em paralisia e morte do parasita. Está disponível na apresentação de comprimidos de 6 mg, sendo sua dose, para tais afecções, de modo geral, 200 mcg de ivermectina por kg de peso corporal (ou, para facilitar, 1 comprimido a cada 30 kg em adultos), por via oral, em dose única (na maioria dos casos).

O início da idéia do uso da ivermectina na COVID-19

A ideia do uso da ivermectina contra o coronavírus teve início baseado em estudos in vitro anteriores demonstrando ação antiviral desse antiparasitário contra outros tipos de vírus, como o da dengue, HIV, influenza e chikungunya

A partir desses trabalhos, um grupo de pesquisadores australianos realizou um estudo in-vitro em que foi vista uma redução do RNA viral do SARS-CoV-2 (vírus responsável pela COVID-19), após uso da ivermectina em uma cultura de células. Segundo o estudo, o medicamento foi capaz de reduzir em 5.000 vezes, após 48 horas, o RNA viral na cultura utilizada no estudo.

Poucos meses depois, foi publicado o primeiro estudo avaliando o uso da ivermectina envolvendo humanos, sendo um estudo observacional, com quase 1.400 pacientes, tendo concluído que a ivermectina reduziria em 80% a mortalidade da COVID-19

Algo muito incrível – para não dizer improvável – em qualquer tipo de intervenção na medicina. Algum tempo depois, esse estudo foi retratado/despublicado, devido a evidências de fraude

Além disso, estudos observacionais, como será discutido logo mais, não servem para confirmar eficácia de intervenções, apenas geram hipóteses. Ensaios clínicos randomizados posteriores, de boa qualidade, evidenciaram ausência de eficácia da ivermectina na COVID-19.

Relembrando as etapas de pesquisa clínica

Estudo in-vitro é a primeira etapa de um longo processo de pesquisa, fazendo parte da fase pré-clínica. Na etapa in-vitro, é testado se a droga tem potencial para funcionar, sendo testada em células humanas ou de animais, normalmente infectadas com a doença em questão. 

Caso tenha potencial, segue para a etapa in-vivo da fase pré-clínica, e é testada em animais vivos, de modo a avaliar tanto se a droga funciona, quanto se é segura. Após essa fase, se eficaz e segura em animais, iniciam-se as fases clínicas, realizadas em humanos, compostas por 4 fases (I, II, III e IV), nas quais são verificadas eficácia e segurança. 

As medicações são liberadas após análise da fase III (realizada em milhares de voluntários) por órgãos regulatórios (no Brasil, a ANVISA). A fase IV ocorre após registro e liberação pela Anvisa, já sendo de uso populacional e tendo farmacovigilância de efeitos adversos. A tabela abaixo sistematiza as etapas de pesquisa: 

Pesquisa e desenvolvimentoFase pré clínica Fases clínicasFase pós comercialização
Fase 1Fase 2Fase 3

Os testes pré-clínicos in-vitro, por serem realizados apenas em células, não consideram a complexidade do organismo humano, com suas inúmeras vias metabólicas, muitas ainda não conhecidas, sendo reduzido apenas a um grupo de células isoladas. 

Sabe-se que a cada 5.000 compostos testados como possíveis medicamentos na fase pré-clínica in-vitro, apenas 5 avançam para a fase clínica. Desses 5, normalmente apenas um se mostra eficaz e seguro em humanos, para, então, ser avaliado e aprovado por órgãos regulatórios. Ou seja, a grande maioria dos medicamentos testados em laboratório não vão funcionar em humanos. 

A reação aos estudos

Com a publicação desses primeiros estudos, alguns governos começaram a usar a ivermectina como medicação contra a COVID-19, assim como diversos médicos passaram a prescrevê-la e pacientes iniciaram seu uso sem a indicação correta

Muitos argumentam que, por ser uma pandemia, não devemos esperar resultados mais robustos para fazer o uso da medicação, ou de que “mal não faz” se não há evidência de que não funciona.

O meio científico parte de um conceito denominado hipótese nula, em que se considera que determinada conduta não é verdadeira até que boas evidências mostrem o contrário. Isso ocorre pois a maioria das hipóteses não funcionam (como visto acima), sendo mais provável estar certo em não adotar uma conduta do que em a adotar. 

Além disso, afirmar algo falso (no caso, que ivermectina funciona contra a COVID-19) é mais danoso do que não afirmar nada, pois, fora os possíveis efeitos colaterais, existem inúmeras consequências, como: 

  • gasto público;
  • falsa sensação de segurança;
  • abandono de medidas que realmente funcionam;
  • efeito deletério da medicação;
  • interações medicamentosas;
  • etc.

Quanto ao argumento de que “não há evidência de que não funciona”, existem alguns problemas:

  • Essa ideia já parte da certeza de que a medicação é 100% eficaz;
  • Não apenas essa medicação específica, mas tudo que possivelmente seria usado como medicação, tendo como base, por exemplo, testes in-vitro;
  • Ou seja, tanto fazer uso de ivermectina quanto comer leite condensado (que também destrói o vírus in-vitro) serve como “tratamento” da COVID-19. E, claramente, percebe-se que isso não faz sentido.

A partir de quando um medicamento é considerado eficaz?

Medicações/ tratamentos devem ser utilizados apenas quando temos evidências robustas de eficácia, mesmo em situações graves, como a pandemia. O termo “robusto” se refere a estudos do tipo Ensaios Clínico Randomizados (ECR), realizados de forma adequada e planejada (ou seja, também não é qualquer ECR) e que são avaliados no contexto do conhecimento atual da hipótese que é testada. 

Não basta que um ECR seja positivo, também há a necessidade de se avaliar o que já se sabe sobre o que foi testado, para saber o quanto o resultado desse ECR muda o conhecimento atual, e se o resultado é reprodutível em estudos posteriores. 

Colocando em outros termos, temos que avaliar o que já sabemos sobre a ideia a ser testada (probabilidade pré-teste), que irá interagir com o resultado do estudo, fornecendo uma nova informação, que já pode ser aplicada na prática ou servir como base para novos estudos.

Durante a pandemia, vários estudos observacionais e meta-análises foram utilizados como base para validar o uso de medicações como a ivermectina. Quanto aos estudos observacionais, são utilizados quando se deseja avaliar fatores de risco e de prognóstico. 

Porém, em relação a intervenções (como uso de medicação), são bastante limitadas, não avaliando eficácia, apenas gerando a hipóteses de benefício. Isso ocorre devido ao fato de apresentarem diversos vieses (problemas metodológicos do estudo) e fatores de confusão, estes últimos eliminados com a randomização (sendo o ECR, nesses casos, o estudo de escolha). 

Já em relação às meta-análises, elas são uma análise estatística de trabalhos que integram uma revisão sistemática (como o próprio nome diz, é uma revisão da literatura realizada de modo sistemático). Ou seja, só por ser meta-análise não quer dizer que a qualidade da evidência é alta, sendo seu resultado dependente da forma que a revisão foi elaborada e dos tipos e da qualidade dos estudos incluídos. 

A meta-análise de estudos ruins/moderados será de qualidade ruim/moderada. Além disso, a meta-análise de estudos observacionais, no que diz respeito à intervenção, não avalia eficácia, mesmo que de alta qualidade, 

Então, o que dizem os estudos atualmente?

Lembra do que foi dito anteriormente, sobre avaliar o conhecimento atual da hipótese a ser testada? É quando avaliamos a qualidade da ideia, através da probabilidade pré-teste, podendo ser avaliado inclusive se realmente vale a pena investir tempo e dinheiro na hipótese. Vamos avaliar a ideia do uso da ivermectina para tratamento da COVID-19.

Drogas antivirais são mais difíceis de serem desenvolvidas, basta observar quantas são utilizadas na prática clínica, sendo que poucas são curativas, como aquelas prescritas no tratamento da hepatite C. 

O uso da ivermectina como antiviral já é uma hipótese antiga, como dito anteriormente, tendo estudos in-vitro mostrando redução do SARS-CoV-2 em culturas de células, porém em doses 17 vezes maior que a máxima permitida em seres humanos. Revisando ECRs que fizeram uso da ivermectina como antiviral em outras infecções virais, encontrou-se um ECR, no contexto da dengue, por exemplo, em que não se demonstrou eficácia. 

Assim, a ivermectina como antiviral parte de uma probabilidade pré-teste muito baixa de funcionar. Ou seja, possivelmente seria melhor pesquisar outros tipos de tratamento.

Avaliando os ECR publicados sobre a ivermectina no contexto da COVID-19, a revisão sistemática/ metanálise realizada pela Cochrane, com 14 ECRs analisados, observou que poucos desses estudos são de boa qualidade, tendo a maioria deles risco de viés importante (que, normalmente, apresentam tendência favorecendo a intervenção, ou seja, a ivermectina).

Mesmo assim, essa revisão, que incluiu dados publicados até maio de 2021, os quais avaliaram pacientes com COVID-19 leve e moderado/grave quanto à mortalidade, evolução clínica, duração da internação e clearance viral. Conclui-se que, com base nas evidências atuais, não há eficácia da ivermectina em tratar ou prevenir COVID-19. 

Outro ponto avaliado na metanálise foi a prevenção do COVID-19 em pacientes sem a doença, utilizando ivermectina como profilaxia. O resultado também mostrou ausência de evidência. Com base nisso, continuamos no que conversamos anteriormente: o que ainda vale é a hipótese nula (que a ivermectina não funciona). 

E as pessoas que usaram ivermectina e melhoraram?

A história natural da COVID-19 é de que 85% das pessoas melhoraram sem necessidade de qualquer tipo de intervenção (incluindo oxigênio suplementar e medicações). Ou seja, o mais provável é a doença melhorar. 

Muitas vezes usamos medicações e acreditamos que são essas medicações que levaram a uma melhora da doença (pelo fato de fazer uso da medicação e, alguns dias após, apresentar melhora), porém, com ou sem a medicação, a doença já iria regredir, pois é como a condição iria evoluir de qualquer forma.

Além disso, quando falamos em medicações com eficácia comprovada, não quer dizer que é determinístico, ou seja, não quer dizer que fazer o uso da medicação determinará a cura da doença e o não uso acarretará a perpetuação dela. 

As intervenções na medicina, quando eficazes, são modestas. Podemos usar como exemplo o estudo RECOVERY, que mostrou a eficácia da dexametasona na diminuição da mortalidade em pacientes com COVID-19 que necessitam de oxigênio suplementar. 

Nesse estudo, houve uma redução de 17% da mortalidade no grupo da dexametasona. Ou seja, os pacientes que fazem uso da dexametasona, nos casos de COVID-19 com uso de oxigênio, têm 17% menos chance de morrer do que os que não usam. Assim, o benefício está longe da crença de achar que fazer uso de uma medicação (ainda mais sem eficácia, como a ivermectina) é um fator determinante para a melhora do quadro.

Para finalizar

A ivermectina é uma medicação recorrentemente testada contra vírus, porém nunca demonstrada eficaz. Estudos in-vitro são apenas o início de toda uma linha de pesquisa, sendo que menos de 1% deles avançam para estudo em humanos. 

Estudos observacionais apresentam importante viés de confusão, não podendo ser utilizados para comprovar eficácia. Precisamos de ECRs bem desenhados para a comprovação da eficácia. Até que isso seja possível, consideramos a hipótese nula (ausência de benefício da medicação), sendo esse o estado atual da ivermectina: não há evidência para considerá-la eficaz contra a COVID-19.

É isso!

Sobre a eficácia da ivermectina contra a Covid-19, é isso! Esperamos que tudo tenha ficado claro e que você tenha compreendido o conteúdo!

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Referências

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RafaelCarvalho Almada Melo

Rafael Carvalho Almada Melo

Nascido em Teresina-PI em 1991. Formado pela Universidade de Brasília (UnB) em 2018, com residência em Medicina de Familia e Comunidade, concluída em 2021.