A síndrome hemolítico-urêmica (SHU) é uma microangiopatia trombótica (as temidas MATs), definida pela tríade clínica de anemia hemolítica, trombocitopenia e lesão renal.
É temida devido ao risco de evoluir com necessidade de terapia de substituição renal caso não seja reconhecida e manejada precocemente.
Quer saber mais? Bora continuar a leitura com a gente!
Antes de adentrarmos no tema de Síndrome hemolítico-urêmica propriamente dito, vamos falar um pouquinho sobre o que são as Microangiopatias Trombóticas.
MAT é o termo utilizado para descrever uma lesão patológica específica que ocorre por anormalidades nas paredes de arteríolas e capilares que levam à trombose microvascular.
Apresenta várias etiologias (MATs primárias e MATs associadas a condições sistêmicas), sendo que todas compartilham dos achados patológicos e das manifestações clínicas caracterizadas por:
Sempre que estivermos considerando um diagnóstico de MAT, primeiramente, devemos descartar condições sistêmicas que podem evoluir com MAT.
Estas, por sua vez, podem acontecer por meio de gestação (pré-eclâmpsia e HELLP), infecções (HIV, endocardite e malária), hipertensão maligna, malignidades, doenças reumatológicas (lúpus, esclerodermia e SAAF) e pós-transplante de medula óssea ou órgãos sólidos.
Descartando-se MAT secundária a condições sistêmicas, devemos pensar nas causas primárias, sendo as quatro condições principais a Síndrome Hemolítico-Urêmica (SHU), a Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT), a MAT mediada por complemento e a MAT induzida por medicamentos.
O foco deste capítulo será a abordagem da SHU e falaremos um pouquinho da sua quase irmã, a PTT! Então, vamos lá!
SHU é uma síndrome rara que ocorre mais frequentemente em crianças, principalmente em menores de 5 anos, com uma incidência anual de 5 a 6 casos em 100.000 crianças.
A importância da SHU é que é uma das causas de lesão renal aguda grave em crianças, com risco de evolução para necessidade de terapia de substituição renal se não detectada precocemente.
A SHU em adultos é menos comum ainda e a maioria dos casos é associada a infecções.
Agora, vamos falar sobre a classificação referente a síndrome hemolítico-urêmica:
• SHU típica:
– SHU causada pela produção de toxina Shiga;
– Toxina produzida pelos agentes Shigella e EHEC – Escherichia coli entero-hemorrágica (sorotipo O157:H7).
• SHU atípica:
– Também conhecida como SHU mediada por complemento;
– Abrange casos de SHU que ocorrem por alterações genéticas ou adquiridas do sistema complemento.
• SHU secundária:
– SHU por erros do metabolismo (deficiência de vitamina B12);
– Infecções (Streptococcus pneumoniae associado a SHU);
– Drogas (antineoplásicos – Cisplatina; Bleomicina);
– Transplante (forma rara e que pode ocorrer após TMO ou após transplante de órgãos sólidos);
– Sepse (diferenciar SHU e CIVD é essencial!);
– Neoplasias.
Em todas as formas de SHU, há criação de uma lesão endotelial que leva à formação de lesões microvasculares trombóticas e não trombóticas. Estas, por sua vez, geram trombos ricos em fibrina e plaquetas ao nível das arteríolas e capilares.
As anormalidades da microcirculação culminam com hemólise por destruição mecânica das hemácias (por cisalhamento) e trombocitopenia por consumo. Além disso, a trombose microvascular pode gerar diminuição da oferta de oxigênio aos tecidos, levando à lesão isquêmica dos órgãos, principalmente dos rins, no caso da SHU.
Assim, temos a tríade clássica da SHU: anemia hemolítica microangiopática, trombocitopenia e lesão renal aguda.
Pacientes com PTT e SHU muitas vezes necessitam de suporte em ambiente de terapia intensiva devido a evolução com disfunções orgânicas. Assim, é essencial diagnosticar precocemente tais síndromes.
Entretanto, tal diagnóstico pode ser desafiador no âmbito de doenças críticas, pois, como vimos anteriormente, sepse, CIVD, hipertensão maligna
e outras doenças podem mimetizar a apresentação clínica de uma MAT (também levam a lesão endotelial e agregação de trombos na microcirculação).
Ao suspeitarmos de MAT em pacientes críticos, devemos inicialmente avaliar se o paciente apresenta anormalidades de coagulação (avaliando o TP e o TTPA). Em caso de anormalidade, devemos pensar em CIVD (coagulação intravascular disseminada) – PTT e SHU apresentam exames de coagulação normais.
Em caso de normalidade, vamos considerar PTT e SHU a depender dos próximos passos da investigação.
É essencial e urgente distinguir PTT e SHU, isso porque devemos iniciar precocemente a terapia específica para PTT com plasmaférese, como forma de garantir a recuperação da função renal.
O padrão-ouro para diferenciar PTT e SHU seriam as manifestações clínicas e a dosagem de atividade do ADAMTS13, porém tais métodos possuem manifestações. Assim, podemos utilizar um score para ajudar na diferenciação dessas síndromes!
• Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT):
– Pêntade Clínica:
* Anemia Hemolítica Microangiopática;
* Trombocitopenia;
* Febre;
* Alterações Neurológicas;
* Disfunção Renal.
– Deficiência na atividade da protease ADAMTS13 (< 10%)
• Síndrome Hemolítico-Urêmica:
– Tríade Clínica:
* Anemia Hemolítica Microangiopática;
* Trombocitopenia;
* Disfunção Renal.
DIFERENCIAÇÃO DOS PRINCIPAIS DISTÚRBIOS HEMATOLÓGICOS NO PACIENTE CRÍTICO | |||
Doença de Base | Síndrome Hemolítico Urêmica (SHU) | Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT) | Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD) |
Contagem de Plaquetas | Reduzida | Reduzida | Reduzida |
Anemia Hemolítica Microangiopática | Presente | Presente | Presente |
TP (INR) | Normal | Normal | Aumentado |
TTPA | Normal | Normal | Aumentado |
Fibrinogênio | Normal | Normal | Reduzido |
D-dímero | Normal | Normal | Aumentado |
Atividade do ADMATS13 | Normal | Reduzido | Normal |
Um dos escores mais utilizados é o PLASMIC score para avaliar a probabilidade de diagnóstico de PTT. Nele é utilizado 7 preditores (contagem de plaquetas, presença de hemólise, neoplasia ativa, história de transplante, VCM, TP e creatinina), sendo que apresenta uma sensibilidade de 90% e uma especificidade de 92% para predizer a
presença de PTT. Independente do resultado, devemos sempre solicitar a mensuração da atividade do ADAMTS13, mas é útil para não aguardar um resultado de um exame pouco disponível para indicar a plasmaférese (lembrar que PTT é uma urgência hematológica!).
Uma vez descartado PTT, devemos pensar em SHU. Ao contrário da PTT, não há escore validado para o avaliar o diagnóstico de SHU. Assim, a abordagem depende da clínica do paciente.
Deve ser questionado sobre quadro de infecção gastrointestinal recente (sugestivo de Escherichia coli entero-hemorrágica ou Shigella), infecção de vias aéreas superiores (sugestivo de Streptococcus pneumoniae), história de malignidade, doença autoimune e uso de medicações.
Além disso, devem ser solicitados exames laboratoriais complementares, como sorologias para HIV, hepatites, vírus (avaliar exames para EBV e CMV).
O tratamento dependerá da forma da SHU. Na SHU típica (por infecção gastrointestinal por agente produtor de toxina Shiga) o tratamento é de suporte intensivo com expansão volêmica (essencial para reduzir a frequência de LRA oligoanúrica), anti-hipertensivos e terapia de substituição renal se necessário (SHU com lesão renal em crianças é uma das principais causas de necessidade de diálise na população pediátrica).
O uso de antibióticos por infecção por EHEC ou por Shigella ainda é muito controverso, inclusive com estudos associando o uso de antibióticos com o desenvolvimento subsequentes de SHU.
Outro ponto importante é a transfusão de plaquetas, que devem ser evitadas por aumento de eventos trombóticos e mortalidade em estudos recentes.
A SHU atípica ocorre por uma desregulação do sistema complemento, em que evidências mais recentes sugerem que ocorra por mutações genéticas e exposição a eventos precipitantes, como infecções, condições autoimunes e uso de medicamentos.
Na SGU atípica, nota-se a perda da função de fatores reguladores de complemento, gerando uma produção excessiva de C3b e C3 convertase e, consequentemente, um aumento da formação do complexo de ataque à membrana (C5b-C9), o que culmina com lesão endotelial e formação de lesões trombóticas no leito vascular.
O diagnóstico de SHU atípica no cenário do paciente crítico é de exclusão após descartar outras possíveis causas de SHU. Em caso de diagnóstico de SHU atípica, o paciente é elegível ao tratamento com um inibidor de C5 do complemento, o Eculizumabe.
O prognóstico é desfavorável, com quase 50% dos casos evoluindo com doença renal crônica em estádio final e 25% com falecimento na fase aguda da doença. E por fim, o manejo da SHU secundária dependerá da etiologia (exemplo, suspensão do medicamento, tratamento da infecção, etc).
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Residência em Clínica Médica no Hospital das Clínicas da FMUSP. Graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Intercâmbio acadêmico em estágio de pesquisa científica na Harvard Medical School/Brigham and Women's Hospital. Experiência como Médica-Preceptora da Disciplina de Emergências Clínicas da FMUSP.