Neste texto sobre cirurgia aqui no blog da Medway, vamos falar sobre um grande desafio para o emergencista: o trauma abdominal.
Qual é a prioridade do trauma abdominal no atendimento ao politraumatizado? Como manejar o paciente? Vamos orientar e sanar essas e outras dúvidas!
A avaliação do abdome é um dos segmentos de maior dificuldade no contexto do paciente traumatizado. A primeira coisa a se pensar é em instabilidade ou estabilidade hemodinâmica.
Lesões abdominais e pélvicas não diagnosticadas são uma causa de morte evitável após trauma na região do tronco. Volumes consideráveis podem estar contidos na região abdominal sem que sejam perceptíveis alterações na aparência ou volume. Além disso, o sangue pode dar sinais de irritação peritoneal mais tardia (cerca de 6 a 8 horas).
O abdome é a maior cavidade do corpo humano e compreende a região do tronco que fica entre o tórax e a pelve.
A transição toracoabdominal tem como limites:
O diafragma divide a cavidade torácica da abdominal e, ao se elevar até o nível do quarto espaço intercostal na expiração completa, fraturas de arcos costais inferiores ou ferimentos nessa zona de transição podem gerar lesões de órgãos abdominais.
Anatomicamente, o abdome é dividido em 9 regiões e 4 quadrantes.
Já o abdome anterior tem como limites:
O flanco corresponde à área entre as linhas axilares anterior e posterior. O dorso localiza-se na região entre as linhas axilares posteriores, ponta das escápulas e cristas ilíacas. Tanto o flanco quanto o dorso têm uma maior proteção pela espessa musculatura como barreira para ferimentos penetrantes. É nessa região onde estão contidos os órgãos retroperitoneais.
Lesões em órgãos retroperitoneais são de difícil diagnóstico devido à impossibilidade de exame físico adequado. Assim, sinais e sintomas podem se apresentar tardiamente, como a irritação peritoneal.
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Voltando ao nosso tema, para você pensar nas regiões acometidas e as possíveis lesões envolvidas no evento traumático, é preciso saber qual foi a biomecânica.
No trauma fechado, pode ocorrer lesão por impacto direto por compressão de vísceras abdominais ou por um mecanismo indireto de lesão (o pedículo do órgão pode romper pela desaceleração brusca, causando o cisalhamento).
Em trauma fechado, os órgãos mais acometidos são o baço (40 a 55%), o fígado (35 a 45%) e intestino delgado (5 a 10%).
No trauma abdominal aberto, deve-se avaliar se foi penetrante ou não penetrante. Considera-se penetrante quando atravessa o peritônio.
Ferimentos por arma branca acometem principalmente fígado (40%), intestino delgado (30%), diafragma (20%) e o cólon (15%). Já os ferimentos por arma de fogo lesam mais o intestino delgado (50%), cólon (40%) e fígado (30%).
O primeiro ponto a ser avaliado é a estabilidade hemodinâmica do paciente. Doentes sem instabilidade e sem peritonite conseguem passar por uma avaliação detalhada sem aumentar sua morbimortalidade.
Expor o paciente à procura de sinais de hematomas, contusões, abrasões ou ferimentos que possam indicar lesões intra abdominais. Lembrar de rolar em bloco para avaliação adequada do dorso.
Ao término, cobrir o doente para evitar hipotermia.
Na sala de emergência, é difícil realizar essa etapa. A ausculta é mais útil quando o exame físico inicial está normal. Durante o seguimento, percebe-se alteração.
Dor à percussão, quando presente, já indica irritação peritoneal. A palpação abdominal ajuda a definir os locais de maior desconforto e possíveis lesões, como também a diferenciar entre uma dor superficial, apenas da parede da dor profunda intra-abdominal.
A estabilidade da pelve é outro ponto que deve ser bem avaliado. Esse procedimento deve ser feito apenas uma vez para evitar a agravação da hemorragia. Como ele é realizado? O examinador aplica uma leve pressão sobre as cristas ilíacas de maneira medial e descendente.
Sangue no meato uretral, equimose ou hematoma no períneo são sugestivos de lesão uretral. Deve-se prosseguir com o exame retal em vítima de trauma fechado para avaliar, além do tônus, a integridade da mucosa retal e a posição da próstata (ruptura de uretra causa deslocamento cranial da próstata). Em pacientes com possível lesão uretral, a sonda de Foley não deve ser utilizada.
A sondagem gástrica serve para descomprimir o estômago antes de realizar LPD, reduzir a incidência de aspiração de conteúdo gástrico e observar sangramento. Na presença de fraturas graves de face ou suspeita de fratura de base de crânio, a sonda gástrica deve ser inserida pela boca para impedir que atravesse a placa crivosa.
A sondagem vesical permite a monitorização adequada do débito urinário, aliviar a retenção urinária e descomprimir a bexiga antes de realizar LPD. Em caso de hematúria macroscópica, é um sinal de trauma do trato geniturinário e de órgãos intra-abdominais não renais. Contudo, sua ausência não descarta tais lesões.
Exames auxiliares podem ser realizados em casos de suspeita de lesão intra-abdominal, mas não pode atrasar o tratamento definitivo do doente se ele já apresentar indicação de laparotomia.
A radiografia AP de tórax é recomendada em vítimas de trauma fechado hemodinamicamente estáveis para avaliar hemotórax, pneumotórax e ar intraperitoneal.
O Focused Assessment with Sonography for Trauma (FAST), quando realizado por pessoas devidamente treinadas, é um exame confiável para identificar fluidos intraperitoneais, além de avaliar a presença de tamponamento cardíaco (sensibilidade varia entre 86 a 97%). O FAST inclui o exame de quatro regiões: o saco pericárdico, o espaço hepatorrenal (Morison), o espaço esplenorrenal e a pelve (fundo de saco de Douglas).
A Lavagem Peritoneal Diagnóstica (LPD) é um exame invasivo que apresenta alta sensibilidade para presença de sangue intraperitoneal (98%) e baixa especificidade. Ela também é indicada em doentes estáveis com trauma fechado quando o FAST e a TC estão indisponíveis.
Contraindicações relativas são cirurgias abdominais prévias, obesidade mórbida, cirrose avançada e coagulopatia preexistente.
A LPD tem como opções a técnica aberta, semiaberta e fechada (Seldinger). A incisão é realizada na região infra umbilical, exceto em gestante ou fratura de pelve em que a incisão é feita supraumbilical.
A aspiração de conteúdo gastrointestinal, fibras vegetais ou bile através da lavagem cateter ou a aspiração de 10 mL ou mais sangue indica laparotomia.
Caso não se aspire esse volume, são introduzidos 1000 mL de solução cristaloide isotônica aquecida. O teste é positivo quando apresenta:
A tomografia computadorizada com contraste é indicada em pacientes estáveis. É o exame mais específico para definir lesão, com sensibilidade de 92 a 98%.
Pacientes com ferimento por arma branca em 55 a 60% dos casos que penetram o peritônio anterior têm hipotensão, peritonite ou evisceração de epíplon ou intestino delgado e necessitam de laparotomia de emergência. Nos demais casos, a exploração da ferida confirma ou suspeita de penetração da cavidade em cerca de 50% dos casos com necessidade de procedimento cirúrgico. Nos casos assintomáticos, opta-se por exames físicos seriados e exames de imagem.
Ferimentos em flancos ou dorso apresentam a proteção da espessa camada de músculos em ferimentos por arma branca ou de fogo, como citado anteriormente. Para pacientes assintomáticos, exame físico seriado, LPD e TC com duplo (endovenoso e oral) ou triplo contraste (endovenoso, oral e retal) são realizados.
A tomografia com duplo ou triplo contraste pode permitir que o diagnóstico seja realizado de maneira mais precoce em doentes relativamente assintomáticos quando comparada ao exame físico seriado.
As indicações para laparotomia exploradora são:
A laparoscopia é uma opção em casos de traumas abdominais fechados com dúvida de lesão intra-abdominal. Trata-se de uma excelente opção para trauma em região de transição tóraco-abdominal.
Suas principais vantagens são visão direta das estruturas lesadas, acesso à cavidade com pequenas incisões e uma boa visualização de vísceras maciças, diafragma.Já suas desvantagens são a abordagem invasiva e a anestesia geral.
Entre as possíveis complicações, podemos citar a lesão de estruturas durante a punção do trocater, embolia gasosa e pneumotórax hipertensivo em casos de lesão diafragmática quando injeta gás.
O hemidiafragma esquerdo é o mais acometido. Elevação ou borramento do hemidiafragma esquerdo podem estar presentes na radiografia inicial do tórax.
Suspeita-se de lesão diafragmática em todo o ferimento na região toracoabdominal e pode ser confirmada pela laparotomia, toracoscopia ou laparoscopia.
A principal causa é um trauma direto no epigástrio que comprime o pâncreas contra a coluna vertebral.
Níveis crescentes ou que se mantêm elevados indicam avaliação adicional do pâncreas.
TC com duplo contraste nas primeiras 8 horas após o trauma pode não mostrar alterações, devendo ser repetido depois em caso de suspeita de lesão.
Geralmente, lesões no intestino são decorrentes da desaceleração brusca com tração do ponto de fixação do órgão. Tais lesões devem ser pesquisadas em casos de equimoses lineares (sinal do cinto de segurança) ou uma fratura lombar com desvio detectada na radiografia (sinal de Chance).
A lesão de duodeno é mais comum em colisão frontal com motorista sem cinto de segurança ou golpe direto no abdome (guidão de bicicleta).
Ar retroperitoneal ou sangue no aspirado gástrico aventam a possibilidade de ter lesão. Estudo radiográfico contrastado ou TC com duplo contraste podem confirmar o ferimento.
Em casos de instabilidade hemodinâmica ou indício de sangramento ativo, a laparotomia está indicada. Todavia, em pacientes que apresentam estabilidade hemodinâmica, a conduta pode ser conversadora e o doente é mantido em observação para ser reavaliado em caso de piora.
Os quatro mecanismos de trauma que causam fraturas pélvicas são: compressão lateral (60 a 70%), compressão ântero posterior (15 a 20% – em livro aberto), cisalhamento vertical (5 a 15%) e padrões complexos.
O tratamento inicial de uma fratura pélvica com sangramento ativo é a reposição volêmica, a estabilização mecânica do anel pélvico e a contrapressão externa. Um lençol, cinta pélvica ou outro dispositivo pode ser aplicado no nível dos trocânteres maiores dos fêmures para se estabilizar a pelve instável.
Bom, já que agora você já sabe conduzir um caso de trauma abdominal, nosso artigo termina por aqui. Nosso objetivo principal hoje foi identificar as prioridades no atendimento ao trauma abdominal e o manejo do paciente.
Agora, você está muito mais preparado para atender um politrauma!
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Aquele abraço e até a próxima.
Nascido em 1993, em Maringá, se formou em Medicina pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Residência em Medicina de Emergência pelo Hospital Israelita Albert Einstein.